21 outubro 2006

Ser "como as crianças"

Como revelam diversas passagens dos Evangelhos, Jesus recomendava seguidamente aos que o seguiam a adoção, na vida, de uma atitude contemplativa. Entre essas passagens, uma das mais significativas é aquela que se refere às crianças, apresentada por São Mateus:

"Nessa ocasião, os discípulos aproximaram-se de Jesus e lhe perguntaram: 'Quem é o maior no Reino dos Céus?' Ele chamou perto de si uma criança, colocou-a no meio deles e disse: 'Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus. Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. E aquele que receber uma criança como esta por causa do meu nome, recebe a mim.' " (Mt 18, 1-5)

Evidentemente Jesus não tinha a intenção de propor aos que o ouviam que se tornassem "infantis", regredindo a estágios anteriores da existência e esquecendo as lições recolhidas ao longo dela. Como podemos, então, aplicar estes preceitos a nossas vidas, e em que sentido eles podem ser associados à atitude contemplativa? O teólogo Hans Urs von Balthasar, um dos maiores do século XX, dedicou um livro [1] à discussão desse tema. Algumas passagens dessa obra podem nos ajudar.

Von Balthasar assinala, de início, aspectos ligados à ética e à própria santidade original do homem, certamente reconhecidos por Jesus ao nos propor a infância como modelo:

"As formas de existência infantis, esquecidas na idade adulta, remetem-nos a uma terra original onde tudo está imerso no justo, no verdadeiro e no bem, uma zona inviolada e misteriosa que não temos o direito de chamar de 'pré-ética' ou de 'inconsciente'; (...) Bem ao contrário, esta zona inviolada indica uma esfera de integridade original e mesmo um momento de santidade - talvez por ser a criança ainda incapaz de distinguir entre o amor dos pais e o amor de Deus. (...) Jesus incentiva os que o ouvem a refletir sobre sua origem verdadeira, à qual voltaram as costas; ele exige, portanto, deles um retorno espiritual para que tomem consciência dessa origem."

A dificuldade de seguir, no mundo atual, os preceitos a que nos referimos é comentada pelo autor do seguinte modo:

"A exigência cristã de manter viva nossa situação de crianças de Deus em todos os domínios da existência provavelmente se torna mais difícil na medida em que o homem técnico tenta organizar e administrar tudo por si mesmo. (...) O homem que quer dominar e compreender sua origem misteriosa não pode fazê-lo senão produzindo-se a si mesmo, e nós seguimos com determinação por essa estrada da autoprodução do homem. Fazendo isto, o maravilhoso mistério da infância é despojado de seu valor mais fundamentalmente do que nunca. Mas o ideal de autofabricação do homem é, infalivelmente, sua autodestruição: ele se transforma em um golem [2]. Por isto, o modelo cristão oposto, aquele que enfatiza nossa condição de filhos de Deus – o modelo de estado de infância mesmo do homem adulto, ativo e criador –, conserva seu pleno valor, e representa mesmo um valor em alta."

Quais os traços essenciais da pessoa que vive, como adulto, a situação de criança de Deus? Von Balthasar relaciona alguns traços, que ele identifica no próprio Cristo:

1. "Todas as suas palavras e atos revelam que ela dirige seu olhar para o Pai com o assombro eterno da infância: 'O Pai é maior do que eu' (Jo 14, 28). (...) Conservar o assombro no mundo dos homens não é coisa fácil, pois tantos aspectos de nossa educação têm em vista a aprendizagem do habitual, do dominado, daquilo que funciona automaticamente. (...) Mas, para quem se mantém aberto ao absoluto, há também um assombro diante da natureza e de suas aparências exteriores: sem dúvida a semente germina, a primavera chega de novo, a diversidade das espécies animais é conhecida; mas não é preciso continuar a sentir assombro por todas essas coisas serem? A luz que emana de uma flor, o olhar implorante ou reconhecido de um cão não merecem tanto nosso assombro quanto o funcionamento de um novo avião? (...)

2. "De tudo isto resulta, imediatamente, a gratidão elementar, da qual podemos, mais uma vez, encontrar o arquétipo na infância eterna de Jesus. A gratidão ou ação de graças – em grego eucharistia – é o princípio da atidude de Jesus diante do Pai. (...) Toda celebração eucarística da comunidade Igreja é, em sua essência, ação de graças ao Pai; nela todos os participantes dão graças, com o Filho, pelo 'grande festim'. (...) Quando ordenamos a uma criança em crescimento: 'diga por favor', 'diga obrigado', não lhe estamos ensinando algo novo, mas tentando passar a ela algo que está presente, desde a origem, na esfera de uma consciência amadurecida. (...)

3. "O espírito da infância reconhece e mantém viva a essência íntima e misteriosa da Igreja. (...) É nos sacramentos que isto se mostra com mais nitidez. Somente Deus organiza, na Igreja, o grande festim eucarístico para o qual somos convidados como seus filhos. (...) Cada um que se adianta para receber um sacramento é, como uma criança, puro receptor, embora possa oferecer algo de seu: mas mesmo isto não revela senão sua disposição de ser plenamente uma criança. (...) A imagem bíblica das ovelhas que o Bom Pastor conduz às pastagens não se refere a pessoas de pouca idade, mas à própria faculdade dos cristãos adultos de se deixarem guiar. (...)

4. "A criança é dona do tempo, um tempo sem cálculo, não subtraído egoisticamente a alguém, um tempo recebido com serenidade. Um tempo para brincar. Ela nada sabe dos prazos que fazem, antecipadamente, de cada instante um objeto de negociação. Quando São Paulo nos exorta a "tirar proveito do tempo presente" (Col. 4, 5) ele quer, provavelmente, dizer o contrário, isto é: não dilapidar os dias e as horas como objetos sem valor, mas viver plenamente o tempo que nos é oferecido: não 'gozar' nem 'aproveitar' o tempo, mas unicamente acolhê-lo plenos de gratidão, como uma taça cheia que nos é oferecida. O instante é pleno, pois é o tempo, em sua totalidade, que se concentra nele, por assim dizer, sem esforço. Na criança se misturam a lembrança daquilo que sempre foi recebido e a esperança de dispor sempre de mais tempo. É por isto que ela não teme a efemeridade do instante. A percepção disto a impediria de acolher cada instante plenamente, de 'saboreá-lo.' "

Para quem tem familiaridade com a literatura contemplativa não será difícil reconhecer, como características habitualmente referidas dos contemplativos cristãos, os traços, disposições e atitudes mencionados por von Balthasar nos trechos acima transcritos (assombro diante da existência, do bem e da beleza, docilidade à vontade e à ação de Deus, gratidão por seus dons, consciência do mistério de Deus e da Igreja, valorização do instante presente etc). Em vista disso, talvez seja válido definir, de forma resumida, a atidude contemplativa como "a disposição permanente de quem procura manter vivo, em suas relações com Deus, com a criação e com o próximo, o espírito de infância".

[1] Hans Urs von Balthasar: Si Vous ne Devenez comme Cet Enfant – Desclée de Brouwer, 1989 (tradução do original em alemão)
[2] Golem: em hebraico, massa informe; no folclore hebraico, um ser humano artificial dotado de vida.