Mestres espirituais
Em sua carta apostólica Orientale Lumen (1) o Papa João Paulo II chamava a atenção dos católicos para o patrimônio cristão das Igrejas Orientais, valorizando determinadas características dessas Igrejas que, por motivos históricos, não se desenvolveram tão bem no Ocidente. Este fato foi reconhecido pelo Concílio Vaticano II, como demonstra a seguinte passagem do Decreto sobre o Ecumenismo (2): "No estudo da verdade revelada, o Oriente e o Ocidente usaram métodos e modos diferentes para conhecer e exprimir os mistérios divinos. Não admira, por isso, que alguns aspectos do mistério revelado sejam por vezes apreendidos mais convenientemente e postos em melhor luz por um ou por outro."
Um traço particular das Igrejas Orientais, referido por João Paulo II na mencionada carta apostólica, é a grande unidade conservada pelo monaquismo, que ali não conheceu, "como no Ocidente, a formação dos diferentes tipos de vida apostólica." Nesse monaquismo, que "foi desde sempre a própria alma das Igrejas Orientais", o Santo Padre ressalta o papel dos mestres espirituais, tão dificilmente encontrados no Ocidente:
"O percurso do monge, em geral, não é traçado unicamente pelo esforço pessoal, mas apoia-se num pai espiritual, a quem se abandona com confiança filial na certeza de que nele se manifesta a terna e exigente paternidade de Deus. Esta figura dá ao monaquismo oriental uma extraordinária mobilidade (...) O Oriente ensina, de maneira particular, que existem irmãos e irmãs a quem o Espírito dispensou o dom de guia espiritual: eles são pontos de referência preciosos, porque vêem com o olhar de amor que Deus mantém sobre nós. Não se trata de renunciar à própria liberdade, para se deixar governar por outros: trata-se de tirar proveito do conhecimento do coração, que é um verdadeiro carisma, para ser ajudado, com doçura e firmeza, a encontrar o caminho da verdade. O nosso mundo tem uma necessidade extrema de pais espirituais."
Em seu famoso livro Celebração da Disciplina (3) Richard J. Foster, um notável mestre espiritual protestante (quacre), refere-se do seguinte modo aos mestres espirituais:
"Na Idade Média, nem mesmo os maiores santos tentaram as profundidades da jornada interior sem a ajuda de um diretor espiritual. Hoje mal se entende o conceito, nem é praticado. Isto é uma tragédia, porque a idéia do diretor espiritual é altamente aplicável no cenário contemporâneo. É uma bela expressão da orientação divina mediante a ajuda de nossos irmãos e irmãs.
"A direção espiritual tem uma história exemplar. Muitos dos primeiros diretores espirituais foram os Pais que viviam no deserto e eram tidos em alta consideração por sua capacidade de 'discernir espíritos'. Muitas vezes as pessoas viajavam quilômetros e mais quilômetros no deserto apenas para ouvir uma breve palavra de conselho, uma 'palavra de salvação', que resumia a vontade e o juízo de Deus para uma situação específica. Os Apotegmas ou 'ditos dos Pais' são um eloqüente testemunho da simplicidade e profundeza dessa orientação espiritual.
"Qual é a finalidade de um diretor espiritual? Ele é um instrumento de Deus para abrir o caminho ao ensino interior do Espírito Santo.
"Sua função é pura e simplesmente carismática. Ele guia somente pela força da sua santidade. Não se trata de um superior ou de alguma autoridade nomeada pela igreja. O relacionamento é o de um conselheiro com um amigo. Embora o diretor tenha, obviamente, progredido mais nas profundezas interiores, os dois estão juntos, aprendendo e crescendo no reino do Espírito."
Um dos mais destacados mestres espirituais católicos contemporâneos, o Pe. Thomas Keating OCSO, um monge trapista dos EUA, oferece alguns conselhos (4) para a prática da direção espiritual:
"Acho que os diretores espirituais de hoje não precisam entrar em muitos detalhes sobre as virtudes e vícios com os quais as pessoas lutam no início de sua jornada espiritual, porque você pode encontrar tudo isto muito bem explicado em livros. A direção espiritual é especialmente valiosa quando as pessoas estão encontrando dificuldades na prática da oração mental; neste caso, o papel do diretor é ajudar os que a ele se confiam a descobrir qual deve ser sua atitude em face das dificuldades na oração (...) Certas devoções podem ser muito úteis. Mas ainda mais útil para o diretor é ser muito receptivo ou plenamente presente em relação aos orientandos, de modo a poder ouvir o que eles têm a dizer e proporcionar-lhes o desafio de ouvir suas próprias palavras como que refletidas de volta. Desse modo eles poderão compreender o que o Espírito Santo lhes está pedindo para fazer ou deixar de fazer. (...)
"Assim, o diretor oferece não tanto conselhos aos orientandos, mas a oportunidade de olharem honestamente, sem vergonha nem sentimentos de culpa, para as coisas erradas com as quais estão envolvidos, e perceberem que muitos dos seus erros estão enraizados no apego radical a três centros de energia (necessidades instintivas de sobrevivência e segurança, poder e controle, afeto e estima). Isto é o que mais pode se aproximar dos ensinamentos de Jesus. (...)
"A questão real é saber se estamos dispostos a nos submeter ao processo de cura, isto é: a ser divinizados, na expressão dos Padres Gregos. Para mim, a direção espiritual diz respeito a clarificar, encorajar, desafiar, revigorar os esforços que as pessoas estão fazendo. No final, mesmo esse esforço torna-se não-esforço, no sentido de que quanto menos fizermos, confiando-nos completamente a Deus, mais depressa seremos curados.
"Desapegar-nos de nossos modos psicológicos ordinários de consciência é uma prática, não um estado de vida, até que Deus nos permita manter uma consciência contínua de sua presença."
Certas percepções de outras correntes religiosas podem enriquecer a compreensão, pelos mestres espirituais cristãos, do seu papel. Dom Henri Le Saux (Abhishiktânanda), um beneditino francês que se radicou na Índia (de 1948 a 1973) na intenção de transmitir a mensagem dos Evangelhos segundo modos adaptados à cultura daquele país, e também de ali aprender a aprofundar suas práticas de interiorização, tornou-se plenamente qualificado para falar do Hinduísmo. Nas seguintes passagens de livros seus, ele explica as funções atribuídas naquele ambiente ao guru (mestre espiritual):
"O guru não é um mestre qualquer, nem um professor, nem um pregador, nem um simples guia de almas ou diretor de consciências, que tivesse aprendido pelos livros, ou por outra pessoa, aquilo que ele, por sua vez, ensina aos outros: o guru é alguém que, para começar, passou ele próprio ao Real e que conhece, por experiência pessoal, o caminho que leva a ele; alguém que é capaz de iniciar, pelo fundo, o discípulo nesse caminho e de fazer brotar diretamente de seu coração e em seu coração a experiência inefável que é sua: a consciência toda transparente, toda límpida e pura de que, simplesmente, ele É." (5)
"O guru, por sua vez, nunca é mais que um iniciador; seu único papel é tornar a alma disponível para o Espírito. Ele desaparece tão logo o Espírito é reconhecido interiormente; ou antes, ele nunca passa de uma 'manifestação visível desse Espírito' (cf. 1Cor 12, 7), com a função de preparar o encontro direto e imediato." (6)
"O mestre espiritual tem, como único papel, o de despertar o discípulo para o aham asmi, para o 'Eu sou'." (7)
Essa dimensão ontológica (que diz respeito ao ser) do papel do mestre espiritual escapa a muitos cristãos candidatos à função, mas foi bem percebida por Tullo Goffi, um professor de Teologia Moral e Espiritualidade em faculdades teológicas italianas, especialmente em Milão e Veneza. Tratando, numa monografia (8), da educação espiritual do jovens, ele apresenta conselhos práticos e uma interpretação de grande profundidade do papel do diretor espiritual:
"Em sendo um carisma, a educação espiritual eclesial é chamada a se identificar com o conteúdo e com o modo de comunicação interior feita pelo Espírito. O educador espiritual deve fazer preceder cada orientação ascética sua com a invocação do Espírito, como costumava fazer o Cura d'Ars. O diretor espiritual pode considerar-se um iluminado na medida em que comunica uma palavra ou uma inspiração do Espírito. E não apenas isso. Deve ainda amar o seu orientando com o mesmo amor do Espírito. Dom João Bosco escrevia, de Roma, em 1884: 'Os jovens não sejam somente amados; mas devem saber que são amados'. É um amor repleto de otimismo alegremente confiante, já que é expectativa de quanto o Espírito pode fazer emergir e florescer na alma dos jovens. (...)
"É necessário educar os jovens no sentido espiritual da vida. Como se configura isso? O sentido da vida cristã consiste em nos tornarmos conscientes de ser membros ativos do Cristo integral, e em consentir, de modo obsequioso, que o Espírito imprima em nós a imagem espiritual de Cristo, mediante um caminho pascal caritativo. São Paulo constata que 'aquele que se une ao Senhor, constitui com ele um só espírito' (1Cor 6, 17) e torna-se filho, no Filho de Deus (Rm 8, 14). Tudo isso pressupõe que nos tenhamos tornado participantes do mistério pascal de Cristo, o qual transforma radicalmente não só a experiência virtuosa, mas primariamente a própria entidade ontológica. A pessoa transforma-se de carne em espírito ressuscitado no Senhor: 'Se alguém está em Cristo, é nova criatura. Passaram-se as coisas antigas; eis que se faz uma realidade nova' (2Cor 5, 17). Este sentido fundamental da vida espiritual pode ser comunicado e realizado em nós somente pelo Espírito. O jovem é convidado a se mostrar disponível a semelhante dom do Espírito e a conformar a sua atividade sobre ele."
(1) João Paulo II: carta apostólica Orientale Lumen, 13 - Editora Vozes, 1995
(2) Concílio Vaticano II: Decreto sobre o Ecumenismo Unitatis Reintegratio, 17
(3) Richard J. Foster: Celebração da Disciplina, capítulo 12 - Editora Vida, 2001
(4) Dorothy Whiston: Living in God's Love: An Interview with Thomas Keating, OCSO - Revista Presence - An International Journal of Spiritual Direction, vol 11. no. 3, setembro 2005
(5) Henri Le Saux: Écrits Choisis et Presentés para Marie-Madeleine Davy - Ed. Albin Michel, 1991. A passagem trancrita procede do livro Gnânânda - un Maitre Spirituel au Pays Tamoul - Ed. Présence, 1970
(6) Henri Le Saux: mesma fonte. A passagem trancrita procede do livro Éveil à Soi - Éveil à Dieu. Essai sur la Priére - Ed. Seuil, 1984
(7) Henri Le Saux: mesma fonte. A passagem trancrita procede do livro Initiation à la Spiritualité des Upanishads: vers l'autre Rive. Ed. Sisteron, Présence, 1979
(8) Tullo Goffi: Caminhos da Vida – Segunda parte, capítulo 3 do livro Curso de Espiritualidade, organizado por Bruno Secondin e Tullo Goffi – Edições Paulinas, 1994
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