10 dezembro 2016

Despojamento de Poder

Basta-te minha graça, pois é na fraqueza que se revela totalmente a minha força (2 Cor 12,9)

O texto a seguir, de Dom Thomas Keating OCSO, foi publicado no número de junho de 2014 do boletim Contemplative Outreach News, e traduzido com autorização do autor para apresentação neste blog.


Dom Thomas Keating no Rio
de Janeiro (2003)
Dom Thomas Keating é um monge trapista atualmente residente no Mosteiro de St. Benedict em Snowmass, Colorado, EUA. Durante vinte anos foi Abade na Abadia St. Joseph's em Spencer, Massachussetts, pertencente à mesma ordem. Nesse período deu início, com outros monges, à divulgação, em todo o mundo, da prática contemplativa denominada Oração Centrante, inicialmente proposta no clássico de espiritualidade medieval A Nuvem do Não Saber [1]. Juntamente com seus confrades William Menninger OCSO e Basil Pennington OCSO, compõe o trio historicamente reconhecido de mestres precursores desse movimento. É diretor da organização ecumênica Contemplative Outreach, sediada nos EUA e com ramificações em inúmeros países, dedicada ao ensino da Oração Centrante e à promoção da vida contemplativa entre os cristãos. Dom Thomas Keating é considerado um dos autores espirituais mais importantes dos EUA. Esteve no Brasil em janeiro de 2003, cumprindo no Rio de Janeiro e Belo Horizonte um programa de palestras e retiros. Traduções de cinco de seus livros foram publicadas no Brasil [2, 3, 4, 5, 6].

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O despojamento de poder é nosso maior tesouro.  Embora tudo em nós queira superar essa condição, não devemos procurar fazer isto.  A graça é suficiente para nós, mas não algo que possamos compreender.  Ter muita pressa para se livrar de dificuldades é um erro, pois não sabemos como elas podem ser valiosas na perspectiva de Deus. Sem elas talvez nossa transformação nunca seja tão profunda e tão completa.  

Se tudo o mais falhar, a grande transformação se dará no processo de nossa morte, quando tudo nos será retirado.  A viagem espiritual envolve a disposição de permitir que tudo o que possuímos nos seja tirado antes que o processo da morte tenha início. Com isto adquirimos enorme valor diante de nós mesmos e dos outros, por termos nos antecipado à morte, que não é o fim mas o início da transformação completa.  Quem passou pelo nascimento já atravessou um ensaio da morte, e seu corpo está bem preparado para a translação ou transição final, como muitos dizem. Não podemos ver Deus sem passar pela morte, porque a intensidade de sua presença real nos queimaria, transformando-nos em poeira. 

Durante sua vida Jesus Cristo precisou  esconder a dignidade e o poder de sua natureza  divina.  Um milagre constante era necessário para esconder o fulgor e o poder de sua natureza interior.  A única ocasião em que ela apareceu foi na Transfiguração, quando seu semblante brilhou e suas roupas ficaram mais brancas do que a neve.  Esta foi a única ocasião em que a glória de sua natureza divina pôde transparecer.  

Cristo escolhe sempre o lugar mais baixo. O mais baixo de todos. Por quê?  Porque isto é o que Deus faz.  Ele não se fixa em ser Deus, em receber elogios e agradecimentos.  Aquilo que o interessa é o nosso consentimento ao seu amor. 

São Paulo foi transformado pela comunicação que Deus lhe fez de Si mesmo, e por isso dizia: “Prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo.  Eis porque sinto alegria nas fraquezas”  (2 Cor 12, 9-10).  Esta é a disposição que favorece a transformação.  Ela não envolve grandes experiência espirituais, mas a aceitação de nossas fraquezas humanas à medida que se apresentem.  Paulo assinalou, em seguida, no mesmo texto, suas outras dificuldades, como insultos, provações, perseguições, calamidades sofridas por amor a Cristo, concluindo: “quando me sinto fraco, então é que sou forte”. Quando chegamos a compreender isto, não precisamos de mais preparação.  

Quando nos sentimos totalmente sem apoio, sem base, confusos, quando não temos lugar de pouso, e nos sentimos separados de Deus, alienados de Deus, estamos recebendo as disposições que aparecem na Noite Escura graças ao imenso amor de Deus. Este é o modo pelo qual nossa natureza humana é condicionada pouco a pouco, a um ritmo apropriado para as possibilidades, vocação, personalidade e limitações de cada um.  O processo é tão perfeito que nem poderia ser colocado em uma categoria, como se fosse uma forma especializada de psicoterapia.

Deus nos conhece profundamente e, mesmo assim, continua a nos  amar infinitamente. Sabemos, da biofísica, que enquanto nos apoia em nível fisiológico, o corpo tem de evoluir até certo nível para sustentar nossa inteligência e, ao mesmo tempo,  ser sensível às comunicações divinas.  Não estamos prontos para receber a formidável realidade de Deus sem uma preparação para a qual colaborem todos os elementos de nossa natureza humana. Ele lida com os obstáculos em nós com extraordinária gentileza, carinho, firmeza e paciência.  Se quisermos nos conhecer, devemos falar com Deus.  Ele sabe.

Finalmente, o despojamento de poder é o maior poder que existe, pois essa condição nos habilita a ser cada vez mais um canal para o poder e o amor de Deus –  uma vez que o projeto que Ele acalenta para nós não tem propriamente em vista nosso engrandecimento ou perfeição. 

O que desejamos realmente ser a esta altura de nossa vida e viagem espiritual?  A nossa meta é nos tornarmos santos?  O problema com  o desejo de santidade é que essa meta não é suficiente. Estaríamos optando por uma identidade de segunda mão.  Suponhamos que você seja do Oriente: você desejará o Nirvana, a iluminação ou a grande sabedoria de um Guru. Mas não importa como você vê a meta: é a Noite Escura que é transformadora, porque é nela que nos percebemos despojados de poder.  Com o tempo nos sentiremos contentes com nossas fraquezas e felizes por sermos totalmente dependentes de Deus. 

Neste ponto estaremos entrando no primeiro passo dos AA (Alcoólicos Anônimos) – que é, possivelmente, a mais brilhante sinopse da viagem espiritual cristã existente.  Qual é o primeiro passo? "Tomamos consciência de que nossa vida (qualquer que seja a adicção que nos aflige) tornou-se ingovernável". Quer dizer: não podemos fazer nada com ela. Esta é a disposição perfeita para a transformação. As Noites Escuras, nos conduzem até esse ponto; esta é a sua função. Embora sintamos algum desconforto, os inconvenientes experimentados são menores do que aqueles associados a alguma forma de adicção. Neste mergulho no abismo da bondade de Deus nossa única possessão é Sua infinita misericórdia.  De que mais poderíamos precisar? Nada existe de maior.

Eis a minha base escritural: Em Mateus 10, 39 as seguintes palavras de Jesus são referidas: "Aquele que tentar salvar a sua vida, perdê-la-á. Aquele que a perder, por minha causa, reencontra-la-á". Eu interpreto esse versículo assim: "Aquele que tentar alcançar todas as coisas em que seu falso ser está interessado, atrairá para si a ruína. Mas aquele que se reduzir a nada por minha causa, descobrirá quem ele ou ela realmente é". E quem é realmente ele ou ela? Tudo. O "nada" acima referido não significa propriamente nada, mas "nenhuma coisa", nenhuma identidade fora de Deus. Ao tornar-se "nenhum objeto em particular," você se torna aquilo que Deus é – nenhum objeto em particular, mas tudo. Esta é uma atitude totalmente não possessiva em relação a si próprio. 

Jesus ensinou que quem quiser ser seus discípulo, precisa "negar a si mesmo" – isto é, negar "seu ser mais íntimo". Isto é algo mais crucial do que as outras coisas que Ele nos convida a abandonar.  Qualquer identidade que seja, exceto Deus, não é real. O processo de transformação nos conduz a isto: não termos nenhuma identidade, ou termos uma identidade que na realidade não conhecemos, mas esperamos que seja aquela que Deus tem em vista para nós. Portanto, desejar ser qualquer coisa menos que Deus não é humildade, mas falta de confiança na generosidade de Deus, que na verdade deseja nos dar não apenas todas as coisas, mas o Seu próprio Ser.


Tradução de Maria Antonietta Garcia de Souza
Revisão e copidesque de Sérgio de Morais




[1] A Nuvem do Não Saber (autor anônimo) – Paulus Editora (1987) e Editora Vozes (2008)

[2] Intimidade com Deus (Thomas Keating) – Paulus Editora, 1999

[3] Mente Aberta, Coração Aberto – A Dimensão Contemplativa do Evangelho (Thomas Keating) – Edições Loyola, 2005

[4] O Mistério de Cristo (Thomas Keating) – Edições Loyola, 2005

[5] Convite ao Amor (Thomas Keating) – Edições Loyola, 2005

[6] A Condição Humana (Thomas Keating) – Editora Santuário, 2006