02 agosto 2020

A Meditação Cristã no Brasil (primeiros acordes)

O texto a seguir, publicado no número 18 do Boletim Meditação Cristã (Rio de Janeiro, agosto de 2000) foi traduzido do original em inglês preparado com o coração pelo autor (Sérgio de Morais) e encaminhado em maio de 1999 para o Centro Internacional da WCCM. Uma versão condensada dele foi publicada em inglês pela WCCM na revista comemorativa dos 25 anos da comunidade internacional. 

Passados vinte anos dessa publicação, as informações e opiniões nele contidas permanecem válidas, mas algumas das pessoas citadas já faleceram (Irmã Maria Emmanuel, Con. Sérgio Raupp, Frei Angelino Feitosa, Sra. Jacqueline de Botton e o Pe. Basil Pennington, OCSO). Por falta de espaço, naturalmente foram omitidos no texto os nomes de várias pessoas que deram contribuições valiosas para o trabalho de divulgação da Meditação Cristã e de organização da comunidade de praticantes nos anos iniciais. A elas rendemos homenagem.

No ano de 2000 o autor do texto era coordenador da Comunidade de Meditação Cristã no Rio de Janeiro. Embora mais tarde seus caminhos o tenham conduzido à Oração Centrante (uma prática contemplativa não muito diferente), e a divulgá-la prioritariamente, seu apreço e respeito pela Meditação Cristã e por seus praticantes continuam inalterados. 

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    Embora o ensino da Meditação Cristã como transmitida por Dom John Main seja algo relativamente novo no Brasil, os caminhos que conduziram à sua introdução começaram a ser preparados na década de 50, graças à popularização, no país, dos livros de dois autores contemplativos cristãos: Thomas Merton (1915-1968) e Huberto Rohden (1893-1981).

Thomas Merton é uma celebridade mundial, e seu primeiro livro A Montanha dos Sete Patamares (1948) foi um dos maiores best-sellers daquela década. Como estamos falando do Brasil, é interessante recordar que em nenhum outro país, exceto os Estados Unidos, tantos dos seus livros foram publicados: um total de quarenta e um títulos, dos quais vinte foram traduzidos pela irmã Maria Emmanuel de Sousa e Silva OSB – uma brilhante monja beneditina de Petrópolis, RJ que conta agora 88 anos. Ela também coordenou a tradução de outros dezenove títulos do mesmo autor, qualificando-se assim como a principal tradutora de Thomas Merton em todo o mundo.
Irmã Maria Emmanuel com o autor e sua esposa 
Maria Sylvia D'Almeida Morais - Mosteiro da Virgem
Petrópolis - RJ (1995)

Huberto Rohden, por sua vez, é escassamente conhecido fora do Brasil. Tendo se tornado um jesuíta aos 25 anos, após duas décadas de ministério era reconhecido como um religioso de grande influência, graças ao seu brilho intelectual, sua erudição e a alguns livros publicados, nos quais já era bem evidente sua inclinação contemplativa. Desapontado pelas críticas dirigidas por autoridades eclesiásticas locais a algumas de suas idéias, decidiu afastar-se do sacerdócio aos 50 anos para tornar-se professor de Filosofia e Religiões Comparadas na American University, em Washington DC (EUA). Um encontro com Swami Premananda (um discípulo de P. Yogananda), que ensinava Kriya Ioga e meditação em seu templo Golden Lotus, em Washington, iria mudar a rota de Rohden. Ele passou a freqüentar as aulas de  Premananda e, após fértil período de aprendizagem, decidiu retornar ao Brasil para dedicar, de 1952 a 1981, o resto de sua vida ao ensino de sua visão particular do Cristianismo (em que algumas idéias podem ser identificadas como não-ortodoxas) e da meditação (o caminho do mantra). Uma comunidade de seguidores logo seria formada. Ele continuaria a escrever, tendo deixado cerca de sessenta livros sobre temas ligados à espiritualidade. Embora a referida comunidade pareça atualmente estar perdendo o impulso, muitos dos seus livros ainda são publicados e podem ser encontrados na maioria das livrarias brasileiras.    

Por alguma razão não bem identificada, a influência de escritores contemplativos como  Merton e Rohden reduziu-se significativamente, no Brasil, entre meados dos anos 60 e meados dos anos 80. Aqui, como na maioria dos países latino-americanos então afligidos por ditaduras, pode-se apontar como uma das possíveis razões a necessidade – sentida pela Igreja como mais urgente – de engajar-se ao lado do resto do povo na luta pela restauração da democracia e pela mudança das estruturas sociais injustas. Nesse contexto uma brilhante geração de teólogos passou a propor aquilo que atualmente se denomina Teologia da Libertação. As recentes mudanças no cenário internacional têm contribuído para reduzir suas esperanças de mudanças sociais profundas, e alguns desse grupo vêm tomando consciência da importância da renovação da vida contemplativa para os cristãos – mesmo para aqueles ativamente engajados em trabalhos nos campos político e social. 
 
    A publicação no Brasil, em 1987, do livro Meditação Cristã, de John Main (também traduzido pela Irmã Maria Emmanuel) – logo seguido por A Palavra que Vem do Silêncio – sinaliza o início da difusão de seus ensinamentos no Brasil. A Irmã Maria Emmanuel passou a receber muitas cartas de leitores interessados e, seguindo sua sugestão, tomou a iniciativa de preparar e distribuir um conjunto de fitas gravadas em que ela mesma lia as passagens mais significativas desses livros.

Minha participação nesse trabalho começou em 1993 depois da leitura de Meditação Cristã. Tendo estado afastado da Igreja Católica por muitos anos, eu acabara de completar minha jornada de retorno, que havia durado alguns anos. Durante esses anos eu havia tido a oportunidade de ler alguns livros sobre meditação, inclusive alguns de Huberto Rohden. Isto havia me levado a iniciar uma prática regular, e eu costumava comparecer a encontros dos seus seguidores. Neste ponto, após a leitura de Meditação Cristã, eu decidi escrever (em abril de 1993) para o Centro Internacional de Londres pedindo informações sobre publicações. Esta carta foi seguida de outra, de dezembro de 1993, convidando Dom Laurence Freeman a vir ao Brasil para aqui apresentar palestras e conduzir um retiro. Estando ele impossibilitado de vir antes de maio de 1995, nesse entretempo um grupo de trabalho (incluindo amigos da Irmã Maria Emmanuel OSB) foi formado para organizar a futura visita, e uma série regular de reuniões com este objetivo passou a ter lugar na casa de Santa Teresa da Sra. Jacqueline de Botton, no Rio.

Novembro de 2014: Quatro integrantes do grupo que 
planejou a primeira vinda de D. Laurence Freeman 
ao Brasil (Maria das Neves A. Lima, Sylvia de Botton 
Brautigam, Sérgio de Morais e Waldecy Gonçalves)

Refletindo sobre o começo de nossa atual comunidade, percebo que nossa caminhada teve início no ponto de cruzamento das rotas pessoais de vida da Irmã Maria Emanuel,  Thomas Merton, Huberto Rohden, John Main (mesmo sendo já falecidos os três últimos) e da minha própria rota. A Irmã Emmanuel, que havia traduzido tantos dos excelentes livros escritos por Thomas Merton, sentia ainda falta de algo – e encontraria essa parte faltante em Meditação Cristã, o livro mais curto de John Main: um ensinamento simples sobre como meditar. Quanto a mim, embora já tivesse começado a meditar em contexto cristão, encontrava, com pena, no ensinamento sempre respeitável de Rohden três pontos difíceis de conciliar com minha vocação: a insistência de seus seguidores no ensino de doutrina; a não-ortodoxia de alguns conceitos ensinados; e a evidente irrelevância do corpo visível da(s) Igreja(s) para ele. Encontrar o livro Meditação Cristã foi, portanto, uma experiência muito gratificante para mim. Eu imediatamente percebi que havia encontrado o meu caminho. 

    A comunidade de Meditação Cristã no Brasil ainda é bem pequena, mas compreende agora grupos de meditação em pelo menos quinze cidades (evidentemente os meditantes individuais estão espalhados por um número muito maior de locais). O Rio de Janeiro parece ser a cidade que possui o maior número de grupos (treze). O Brasil já recebeu a visita de Dom Laurence Freeman, OSB três vezes, e em 1998 tivemos a sorte de ser visitados ao mesmo tempo por Dom Laurence e pelo Pe. Basil Pennington, OCSO. A comunidade do Rio de Janeiro, que eu tenho a honra de coordenar, edita um boletim local de Meditação Cristã e publica uma tradução para a língua portuguesa do Boletim Internacional. Um site na Internet foi criado e é mantido por José Carlos de Siqueira, o muito ativo coordenador regional de Jacareí, SP. Alguns dos coordenadores regionais, como Henriete da Fonseca (São Paulo, SP), Con. Sérgio Raupp (Gravataí, RS) e Pe. Barry Malone (Curitiba, PR) possuem uma sólida formação teológica. Três livros de Dom John Main e dois de Dom Laurence Freeman foram traduzidos para o português por editoras brasileiras. Uma forte comunidade, não formalmente integrada à WCCM, existe em Recife / Olinda (PE) sob a direção de Frei Angelino Feitosa, um franciscano que começou a promover encontros de oração contemplativa em 1993. 

    O Brasil é um país profundamente religioso, mas a realidade religiosa dos brasileiros é bem complexa. A Igreja Católica, tradicionalmente e por larga margem a denominação mais numerosa, parece seriamente dividida entre suas (assim chamadas) alas “conservadora”e “progressista”, e vem perdendo terreno com grande rapidez para as novas Igrejas evangélicas pentecostais – particularmente nas áreas mais pobres. Por outro lado, as Igrejas protestantes históricas, a Igreja Episcopal Anglicana e as Igrejas ortodoxas aparentemente permanecem relativamente pequenas. Um traço particular que costuma deixar espantados os visitantes estrangeiros que chegam aqui é a larga proporção da população local que segue seja o Espiritismo de Allan Kardec (pouquíssimo difundido mesmo na França, onde nasceu seu fundador), sejam as religiões afro-brasileiras (Umbanda e Candomblé), que a maior parte de nosso povo aprendeu a respeitar graças a Jorge Amado, um dos mais populares escritores brasileiros. Os judeus são bem menos numerosos, e o Budismo, o Islamismo e o Hinduísmo têm uma presença muito diluída no Brasil. Esta complexidade deve ser levada em conta por quantos (assim como nós) tenham a intenção de construir uma comunidade ecumênica em nosso país.

    Até o momento a maior parte dos participantes de nossa comunidade mantém em comum alguns traços característicos: em sua maioria são católicos, mulheres, da classe média e de meia idade. Se quisermos ter, algum dia, uma presença mais visível no país precisaremos encontrar modos de alcançar outras camadas da população, de forma a tornar possível a incorporação a nosso meio de maiores contingentes de jovens, de homens, de cristãos evangélicos / protestantes, e de pessoas das classes trabalhadoras pobres.