02 agosto 2020

A Meditação Cristã no Brasil (primeiros acordes)

O texto a seguir, publicado no número 18 do Boletim Meditação Cristã (Rio de Janeiro, agosto de 2000) foi traduzido do original em inglês preparado com o coração pelo autor (Sérgio de Morais) e encaminhado em maio de 1999 para o Centro Internacional da WCCM. Uma versão condensada dele foi publicada em inglês pela WCCM na revista comemorativa dos 25 anos da comunidade internacional. 

Passados vinte anos dessa publicação, as informações e opiniões nele contidas permanecem válidas, mas algumas das pessoas citadas já faleceram (Irmã Maria Emmanuel, Con. Sérgio Raupp, Frei Angelino Feitosa, Sra. Jacqueline de Botton e o Pe. Basil Pennington, OCSO). Por falta de espaço, naturalmente foram omitidos no texto os nomes de várias pessoas que deram contribuições valiosas para o trabalho de divulgação da Meditação Cristã e de organização da comunidade de praticantes nos anos iniciais. A elas rendemos homenagem.

No ano de 2000 o autor do texto era coordenador da Comunidade de Meditação Cristã no Rio de Janeiro. Embora mais tarde seus caminhos o tenham conduzido à Oração Centrante (uma prática contemplativa não muito diferente), e a divulgá-la prioritariamente, seu apreço e respeito pela Meditação Cristã e por seus praticantes continuam inalterados. 

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    Embora o ensino da Meditação Cristã como transmitida por Dom John Main seja algo relativamente novo no Brasil, os caminhos que conduziram à sua introdução começaram a ser preparados na década de 50, graças à popularização, no país, dos livros de dois autores contemplativos cristãos: Thomas Merton (1915-1968) e Huberto Rohden (1893-1981).

Thomas Merton é uma celebridade mundial, e seu primeiro livro A Montanha dos Sete Patamares (1948) foi um dos maiores best-sellers daquela década. Como estamos falando do Brasil, é interessante recordar que em nenhum outro país, exceto os Estados Unidos, tantos dos seus livros foram publicados: um total de quarenta e um títulos, dos quais vinte foram traduzidos pela irmã Maria Emmanuel de Sousa e Silva OSB – uma brilhante monja beneditina de Petrópolis, RJ que conta agora 88 anos. Ela também coordenou a tradução de outros dezenove títulos do mesmo autor, qualificando-se assim como a principal tradutora de Thomas Merton em todo o mundo.
Irmã Maria Emmanuel com o autor e sua esposa 
Maria Sylvia D'Almeida Morais - Mosteiro da Virgem
Petrópolis - RJ (1995)

Huberto Rohden, por sua vez, é escassamente conhecido fora do Brasil. Tendo se tornado um jesuíta aos 25 anos, após duas décadas de ministério era reconhecido como um religioso de grande influência, graças ao seu brilho intelectual, sua erudição e a alguns livros publicados, nos quais já era bem evidente sua inclinação contemplativa. Desapontado pelas críticas dirigidas por autoridades eclesiásticas locais a algumas de suas idéias, decidiu afastar-se do sacerdócio aos 50 anos para tornar-se professor de Filosofia e Religiões Comparadas na American University, em Washington DC (EUA). Um encontro com Swami Premananda (um discípulo de P. Yogananda), que ensinava Kriya Ioga e meditação em seu templo Golden Lotus, em Washington, iria mudar a rota de Rohden. Ele passou a freqüentar as aulas de  Premananda e, após fértil período de aprendizagem, decidiu retornar ao Brasil para dedicar, de 1952 a 1981, o resto de sua vida ao ensino de sua visão particular do Cristianismo (em que algumas idéias podem ser identificadas como não-ortodoxas) e da meditação (o caminho do mantra). Uma comunidade de seguidores logo seria formada. Ele continuaria a escrever, tendo deixado cerca de sessenta livros sobre temas ligados à espiritualidade. Embora a referida comunidade pareça atualmente estar perdendo o impulso, muitos dos seus livros ainda são publicados e podem ser encontrados na maioria das livrarias brasileiras.    

Por alguma razão não bem identificada, a influência de escritores contemplativos como  Merton e Rohden reduziu-se significativamente, no Brasil, entre meados dos anos 60 e meados dos anos 80. Aqui, como na maioria dos países latino-americanos então afligidos por ditaduras, pode-se apontar como uma das possíveis razões a necessidade – sentida pela Igreja como mais urgente – de engajar-se ao lado do resto do povo na luta pela restauração da democracia e pela mudança das estruturas sociais injustas. Nesse contexto uma brilhante geração de teólogos passou a propor aquilo que atualmente se denomina Teologia da Libertação. As recentes mudanças no cenário internacional têm contribuído para reduzir suas esperanças de mudanças sociais profundas, e alguns desse grupo vêm tomando consciência da importância da renovação da vida contemplativa para os cristãos – mesmo para aqueles ativamente engajados em trabalhos nos campos político e social. 
 
    A publicação no Brasil, em 1987, do livro Meditação Cristã, de John Main (também traduzido pela Irmã Maria Emmanuel) – logo seguido por A Palavra que Vem do Silêncio – sinaliza o início da difusão de seus ensinamentos no Brasil. A Irmã Maria Emmanuel passou a receber muitas cartas de leitores interessados e, seguindo sua sugestão, tomou a iniciativa de preparar e distribuir um conjunto de fitas gravadas em que ela mesma lia as passagens mais significativas desses livros.

Minha participação nesse trabalho começou em 1993 depois da leitura de Meditação Cristã. Tendo estado afastado da Igreja Católica por muitos anos, eu acabara de completar minha jornada de retorno, que havia durado alguns anos. Durante esses anos eu havia tido a oportunidade de ler alguns livros sobre meditação, inclusive alguns de Huberto Rohden. Isto havia me levado a iniciar uma prática regular, e eu costumava comparecer a encontros dos seus seguidores. Neste ponto, após a leitura de Meditação Cristã, eu decidi escrever (em abril de 1993) para o Centro Internacional de Londres pedindo informações sobre publicações. Esta carta foi seguida de outra, de dezembro de 1993, convidando Dom Laurence Freeman a vir ao Brasil para aqui apresentar palestras e conduzir um retiro. Estando ele impossibilitado de vir antes de maio de 1995, nesse entretempo um grupo de trabalho (incluindo amigos da Irmã Maria Emmanuel OSB) foi formado para organizar a futura visita, e uma série regular de reuniões com este objetivo passou a ter lugar na casa de Santa Teresa da Sra. Jacqueline de Botton, no Rio.

Novembro de 2014: Quatro integrantes do grupo que 
planejou a primeira vinda de D. Laurence Freeman 
ao Brasil (Maria das Neves A. Lima, Sylvia de Botton 
Brautigam, Sérgio de Morais e Waldecy Gonçalves)

Refletindo sobre o começo de nossa atual comunidade, percebo que nossa caminhada teve início no ponto de cruzamento das rotas pessoais de vida da Irmã Maria Emanuel,  Thomas Merton, Huberto Rohden, John Main (mesmo sendo já falecidos os três últimos) e da minha própria rota. A Irmã Emmanuel, que havia traduzido tantos dos excelentes livros escritos por Thomas Merton, sentia ainda falta de algo – e encontraria essa parte faltante em Meditação Cristã, o livro mais curto de John Main: um ensinamento simples sobre como meditar. Quanto a mim, embora já tivesse começado a meditar em contexto cristão, encontrava, com pena, no ensinamento sempre respeitável de Rohden três pontos difíceis de conciliar com minha vocação: a insistência de seus seguidores no ensino de doutrina; a não-ortodoxia de alguns conceitos ensinados; e a evidente irrelevância do corpo visível da(s) Igreja(s) para ele. Encontrar o livro Meditação Cristã foi, portanto, uma experiência muito gratificante para mim. Eu imediatamente percebi que havia encontrado o meu caminho. 

    A comunidade de Meditação Cristã no Brasil ainda é bem pequena, mas compreende agora grupos de meditação em pelo menos quinze cidades (evidentemente os meditantes individuais estão espalhados por um número muito maior de locais). O Rio de Janeiro parece ser a cidade que possui o maior número de grupos (treze). O Brasil já recebeu a visita de Dom Laurence Freeman, OSB três vezes, e em 1998 tivemos a sorte de ser visitados ao mesmo tempo por Dom Laurence e pelo Pe. Basil Pennington, OCSO. A comunidade do Rio de Janeiro, que eu tenho a honra de coordenar, edita um boletim local de Meditação Cristã e publica uma tradução para a língua portuguesa do Boletim Internacional. Um site na Internet foi criado e é mantido por José Carlos de Siqueira, o muito ativo coordenador regional de Jacareí, SP. Alguns dos coordenadores regionais, como Henriete da Fonseca (São Paulo, SP), Con. Sérgio Raupp (Gravataí, RS) e Pe. Barry Malone (Curitiba, PR) possuem uma sólida formação teológica. Três livros de Dom John Main e dois de Dom Laurence Freeman foram traduzidos para o português por editoras brasileiras. Uma forte comunidade, não formalmente integrada à WCCM, existe em Recife / Olinda (PE) sob a direção de Frei Angelino Feitosa, um franciscano que começou a promover encontros de oração contemplativa em 1993. 

    O Brasil é um país profundamente religioso, mas a realidade religiosa dos brasileiros é bem complexa. A Igreja Católica, tradicionalmente e por larga margem a denominação mais numerosa, parece seriamente dividida entre suas (assim chamadas) alas “conservadora”e “progressista”, e vem perdendo terreno com grande rapidez para as novas Igrejas evangélicas pentecostais – particularmente nas áreas mais pobres. Por outro lado, as Igrejas protestantes históricas, a Igreja Episcopal Anglicana e as Igrejas ortodoxas aparentemente permanecem relativamente pequenas. Um traço particular que costuma deixar espantados os visitantes estrangeiros que chegam aqui é a larga proporção da população local que segue seja o Espiritismo de Allan Kardec (pouquíssimo difundido mesmo na França, onde nasceu seu fundador), sejam as religiões afro-brasileiras (Umbanda e Candomblé), que a maior parte de nosso povo aprendeu a respeitar graças a Jorge Amado, um dos mais populares escritores brasileiros. Os judeus são bem menos numerosos, e o Budismo, o Islamismo e o Hinduísmo têm uma presença muito diluída no Brasil. Esta complexidade deve ser levada em conta por quantos (assim como nós) tenham a intenção de construir uma comunidade ecumênica em nosso país.

    Até o momento a maior parte dos participantes de nossa comunidade mantém em comum alguns traços característicos: em sua maioria são católicos, mulheres, da classe média e de meia idade. Se quisermos ter, algum dia, uma presença mais visível no país precisaremos encontrar modos de alcançar outras camadas da população, de forma a tornar possível a incorporação a nosso meio de maiores contingentes de jovens, de homens, de cristãos evangélicos / protestantes, e de pessoas das classes trabalhadoras pobres.

 


21 janeiro 2018

Silêncio e Contemplação



Para discernir a voz interior do Espírito, seja durante a leitura das Escrituras, seja durante a oração, faz-se necessária uma atitude de escuta que envolva ao mesmo tempo atenção, confiança e abandono. 

O silêncio externo favorece essa disposição do espírito humano, mas a condição mais importante para seu pleno estabelecimento é o silêncio interior, um estado de atenção pura, de quietude e pacificação do corpo e da mente, em que a corrente de pensamentos, preocupações e imagens que constantemente a atravessa tenha sido significativamente atenuada, quando não (momentaneamente) interrompida. O aprofundamento desse silêncio – e o repouso nesse estado – denominam-se contemplação. 


A contemplação não tem necessariamente um conteúdo, um objeto (contemplar algo). É mais acertado dizer que, em tal estado, e mesmo sem ter consciência disto, o contemplativo deixa-se arrastar pela torrente de amor que o Pai e o Filho se endereçam continuamente, no Espírito.  


Alcançar este estado é uma dádiva da Graça, e independe da maestria de qualquer técnica. Isto não invalida, porém, a colaboração do homem, que idealmente deve dar assentimento à ação do Espírito, dispondo-se favoravelmente na atitude de escuta acima descrita ou, em termos evangélicos, tornando-se “como as crianças” (Mt 18, 3) 


Sérgio de Morais

10 dezembro 2016

Despojamento de Poder

Basta-te minha graça, pois é na fraqueza que se revela totalmente a minha força (2 Cor 12,9)

O texto a seguir, de Dom Thomas Keating OCSO, foi publicado no número de junho de 2014 do boletim Contemplative Outreach News, e traduzido com autorização do autor para apresentação neste blog.


Dom Thomas Keating no Rio
de Janeiro (2003)
Dom Thomas Keating é um monge trapista atualmente residente no Mosteiro de St. Benedict em Snowmass, Colorado, EUA. Durante vinte anos foi Abade na Abadia St. Joseph's em Spencer, Massachussetts, pertencente à mesma ordem. Nesse período deu início, com outros monges, à divulgação, em todo o mundo, da prática contemplativa denominada Oração Centrante, inicialmente proposta no clássico de espiritualidade medieval A Nuvem do Não Saber [1]. Juntamente com seus confrades William Menninger OCSO e Basil Pennington OCSO, compõe o trio historicamente reconhecido de mestres precursores desse movimento. É diretor da organização ecumênica Contemplative Outreach, sediada nos EUA e com ramificações em inúmeros países, dedicada ao ensino da Oração Centrante e à promoção da vida contemplativa entre os cristãos. Dom Thomas Keating é considerado um dos autores espirituais mais importantes dos EUA. Esteve no Brasil em janeiro de 2003, cumprindo no Rio de Janeiro e Belo Horizonte um programa de palestras e retiros. Traduções de cinco de seus livros foram publicadas no Brasil [2, 3, 4, 5, 6].

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O despojamento de poder é nosso maior tesouro.  Embora tudo em nós queira superar essa condição, não devemos procurar fazer isto.  A graça é suficiente para nós, mas não algo que possamos compreender.  Ter muita pressa para se livrar de dificuldades é um erro, pois não sabemos como elas podem ser valiosas na perspectiva de Deus. Sem elas talvez nossa transformação nunca seja tão profunda e tão completa.  

Se tudo o mais falhar, a grande transformação se dará no processo de nossa morte, quando tudo nos será retirado.  A viagem espiritual envolve a disposição de permitir que tudo o que possuímos nos seja tirado antes que o processo da morte tenha início. Com isto adquirimos enorme valor diante de nós mesmos e dos outros, por termos nos antecipado à morte, que não é o fim mas o início da transformação completa.  Quem passou pelo nascimento já atravessou um ensaio da morte, e seu corpo está bem preparado para a translação ou transição final, como muitos dizem. Não podemos ver Deus sem passar pela morte, porque a intensidade de sua presença real nos queimaria, transformando-nos em poeira. 

Durante sua vida Jesus Cristo precisou  esconder a dignidade e o poder de sua natureza  divina.  Um milagre constante era necessário para esconder o fulgor e o poder de sua natureza interior.  A única ocasião em que ela apareceu foi na Transfiguração, quando seu semblante brilhou e suas roupas ficaram mais brancas do que a neve.  Esta foi a única ocasião em que a glória de sua natureza divina pôde transparecer.  

Cristo escolhe sempre o lugar mais baixo. O mais baixo de todos. Por quê?  Porque isto é o que Deus faz.  Ele não se fixa em ser Deus, em receber elogios e agradecimentos.  Aquilo que o interessa é o nosso consentimento ao seu amor. 

São Paulo foi transformado pela comunicação que Deus lhe fez de Si mesmo, e por isso dizia: “Prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo.  Eis porque sinto alegria nas fraquezas”  (2 Cor 12, 9-10).  Esta é a disposição que favorece a transformação.  Ela não envolve grandes experiência espirituais, mas a aceitação de nossas fraquezas humanas à medida que se apresentem.  Paulo assinalou, em seguida, no mesmo texto, suas outras dificuldades, como insultos, provações, perseguições, calamidades sofridas por amor a Cristo, concluindo: “quando me sinto fraco, então é que sou forte”. Quando chegamos a compreender isto, não precisamos de mais preparação.  

Quando nos sentimos totalmente sem apoio, sem base, confusos, quando não temos lugar de pouso, e nos sentimos separados de Deus, alienados de Deus, estamos recebendo as disposições que aparecem na Noite Escura graças ao imenso amor de Deus. Este é o modo pelo qual nossa natureza humana é condicionada pouco a pouco, a um ritmo apropriado para as possibilidades, vocação, personalidade e limitações de cada um.  O processo é tão perfeito que nem poderia ser colocado em uma categoria, como se fosse uma forma especializada de psicoterapia.

Deus nos conhece profundamente e, mesmo assim, continua a nos  amar infinitamente. Sabemos, da biofísica, que enquanto nos apoia em nível fisiológico, o corpo tem de evoluir até certo nível para sustentar nossa inteligência e, ao mesmo tempo,  ser sensível às comunicações divinas.  Não estamos prontos para receber a formidável realidade de Deus sem uma preparação para a qual colaborem todos os elementos de nossa natureza humana. Ele lida com os obstáculos em nós com extraordinária gentileza, carinho, firmeza e paciência.  Se quisermos nos conhecer, devemos falar com Deus.  Ele sabe.

Finalmente, o despojamento de poder é o maior poder que existe, pois essa condição nos habilita a ser cada vez mais um canal para o poder e o amor de Deus –  uma vez que o projeto que Ele acalenta para nós não tem propriamente em vista nosso engrandecimento ou perfeição. 

O que desejamos realmente ser a esta altura de nossa vida e viagem espiritual?  A nossa meta é nos tornarmos santos?  O problema com  o desejo de santidade é que essa meta não é suficiente. Estaríamos optando por uma identidade de segunda mão.  Suponhamos que você seja do Oriente: você desejará o Nirvana, a iluminação ou a grande sabedoria de um Guru. Mas não importa como você vê a meta: é a Noite Escura que é transformadora, porque é nela que nos percebemos despojados de poder.  Com o tempo nos sentiremos contentes com nossas fraquezas e felizes por sermos totalmente dependentes de Deus. 

Neste ponto estaremos entrando no primeiro passo dos AA (Alcoólicos Anônimos) – que é, possivelmente, a mais brilhante sinopse da viagem espiritual cristã existente.  Qual é o primeiro passo? "Tomamos consciência de que nossa vida (qualquer que seja a adicção que nos aflige) tornou-se ingovernável". Quer dizer: não podemos fazer nada com ela. Esta é a disposição perfeita para a transformação. As Noites Escuras, nos conduzem até esse ponto; esta é a sua função. Embora sintamos algum desconforto, os inconvenientes experimentados são menores do que aqueles associados a alguma forma de adicção. Neste mergulho no abismo da bondade de Deus nossa única possessão é Sua infinita misericórdia.  De que mais poderíamos precisar? Nada existe de maior.

Eis a minha base escritural: Em Mateus 10, 39 as seguintes palavras de Jesus são referidas: "Aquele que tentar salvar a sua vida, perdê-la-á. Aquele que a perder, por minha causa, reencontra-la-á". Eu interpreto esse versículo assim: "Aquele que tentar alcançar todas as coisas em que seu falso ser está interessado, atrairá para si a ruína. Mas aquele que se reduzir a nada por minha causa, descobrirá quem ele ou ela realmente é". E quem é realmente ele ou ela? Tudo. O "nada" acima referido não significa propriamente nada, mas "nenhuma coisa", nenhuma identidade fora de Deus. Ao tornar-se "nenhum objeto em particular," você se torna aquilo que Deus é – nenhum objeto em particular, mas tudo. Esta é uma atitude totalmente não possessiva em relação a si próprio. 

Jesus ensinou que quem quiser ser seus discípulo, precisa "negar a si mesmo" – isto é, negar "seu ser mais íntimo". Isto é algo mais crucial do que as outras coisas que Ele nos convida a abandonar.  Qualquer identidade que seja, exceto Deus, não é real. O processo de transformação nos conduz a isto: não termos nenhuma identidade, ou termos uma identidade que na realidade não conhecemos, mas esperamos que seja aquela que Deus tem em vista para nós. Portanto, desejar ser qualquer coisa menos que Deus não é humildade, mas falta de confiança na generosidade de Deus, que na verdade deseja nos dar não apenas todas as coisas, mas o Seu próprio Ser.


Tradução de Maria Antonietta Garcia de Souza
Revisão e copidesque de Sérgio de Morais




[1] A Nuvem do Não Saber (autor anônimo) – Paulus Editora (1987) e Editora Vozes (2008)

[2] Intimidade com Deus (Thomas Keating) – Paulus Editora, 1999

[3] Mente Aberta, Coração Aberto – A Dimensão Contemplativa do Evangelho (Thomas Keating) – Edições Loyola, 2005

[4] O Mistério de Cristo (Thomas Keating) – Edições Loyola, 2005

[5] Convite ao Amor (Thomas Keating) – Edições Loyola, 2005

[6] A Condição Humana (Thomas Keating) – Editora Santuário, 2006


05 junho 2016

O Segredo da Vida Espiritual


O autor do texto a seguir, Frei Clemente Kesselmeir, OFM nasceu em Dortmund, Alemanha em 1934, e faleceu no Rio de Janeiro em 6 de junho de 2011. Aos dez anos de idade viu sua cidade natal ser destruída na segunda guerra mundial. Aos quinze anos, em visita ao túmulo de São Francisco de Assis, de motocicleta, com seu irmão gêmeo, optou pela vida franciscana. 
   
Em outubro de 1955 chegou ao nosso país como seminarista da Província Franciscana Imaculada Conceição do Brasil (SC). Em 15 de dezembro de 1962, ordenou-se sacerdote. Seu irmão gêmeo também emigrou para o Brasil, vindo a abraçar o sacerdócio como padre secular (Pe. Henrique Kesselmeir).
  
Transferindo-se para o Convento de Santo Antônio, no Rio de Janeiro, Frei Clemente trabalhou dezoito anos na Paróquia de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, então dirigida pelos franciscanos, e veio a tornar-se um dos padres mais conhecidos e queridos da cidade. Foi também capelão do Convento das Clarissas, na Gávea. Distinguiu-se como orientador de retiros e celebrante caloroso de missas e casamentos, sendo por muitos considerado como o melhor orador sacro do Brasil em seus dias. Suas missas no Convento de Santo Antônio e no Convento das Clarissas enchiam a igreja e a capela de fiéis profundamente tocados por seu carisma.

Além de sacerdote, pintor, poeta e escritor, foi um profeta que anunciava as maravilhas de Deus e denunciava os males que se opõem ao dom da vida.  Publicou vários livros de incentivo à fé, ao otimismo, à alegria e ao amor, entre os quais o aclamado "Você Pode Viver em Plenitude" (1). Compreendia bem a importância da meditação e da contemplação para os cristãos, e costumava dizer: "antes de nos tornarmos raio temos de ser nuvem". 

No presente texto, escrito em 1997 e essencialmente dirigido aos cristãos em geral, Frei Clemente incluiu uma mensagem dirigida a seus colegas sacerdotes, exortando-os a exercer suas funções com o calor e o entusiasmo que ele mesmo soube imprimir a seu ministério.

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A filha mais nova de um empresário pediu que o pai lesse para ela todas as noites um conto de fadas. Por andar muito ocupado, teve a ideia de gravar os contos. A menina aprendeu a lidar com o gravador e tudo correu bem por algumas semanas, até que uma noite ela entregou o livro ao pai.

 Ora, querida  disse o pai  você sabe ligar tão bem o gravador.

 Sim pai, mas eu não posso sentar-me no colo do gravador.

Os encontros humanos tornam-se cada dia mais frios, distantes, mecânicos, banais.
  
O gravador é como a televisão, não tem nome, não tem rosto nem olhar, não conversa com ninguém. A televisão não nos abraça, não substitui jamais o calor humano, a intimidade, o pulsar do coração; não constrói uma ponte sobre o abismo da solidão. Nunca realiza um  verdadeiro encontro.

O mistério da pessoa é o mistério da liberdade. O mistério da liberdade é o mistério dos encontros.
  
Cada encontro é um mistério. Cada encontro é uma surpresa.

Cada encontro é providencial. Cada encontro tem um sentido.

Um dos encontros mais fascinantes acontece quando o companheiro encontra sua companheira na estrada da vida. Quando acontece esse encontro de amor,  acontece abertura, saída de si mesmo, proximidade, atenção, auto-revelação, diálogo, confiança, reciprocidade, intimidade, comunicação, comunhão.

A boca fala do transbordamento do coração. Mergulhamos no mistério do outro e nos revelamos. Desvendamos nosso nome, nossa história, nossa família, nossos sonhos, nossos sentimentos e pensamentos, nosso ideal, nossa vocação, nossos valores, nossas necessidades, nossas lutas e preocupações, nossas alegrias e angústias, nossa singularidade, o mistério de todo nosso ser.

Revelar-se significa tornar-se transparente ao Mistério do Amor, testemunhar a vida que se renova a partir do encontro.

O verdadeiro encontro entre um homem e uma mulher é o momento de todos os sonhos, de todas as esperanças, de todas as saudades. É o sabor do paraíso, é o céu caído na terra, o esplendor da primavera, a glória da vida, a festa da plenitude, a luz da gratuidade, o jardim da felicidade. É o mistério inefável da relação pessoal e profunda, íntima e intensa de dois seres que se transcendem na autodoação. Acontece um novo nascimento, uma nova realidade, uma nova aliança, uma nova existência, um novo sentido, um novo motivo pelo qual viver e lutar. Fazemos a experiência mais bela da graça que nos envolve como a música, que nos abre novos caminhos e horizontes, que nos ilumina cada dia com uma nova luz.

O que sentimos é a experiência da identidade, uma força interior imensa, uma afinidade profunda, uma vitalidade intensa, a convergência de dois ideais, as verdades mais profundas de nosso ser, que fazem de nossa existência uma transcendência. Sentimos que somos realmente únicos, inconfundíveis e irrepetíveis.

Deslumbramos que o verdadeiro encontro no amor é sagrado, é divino e portanto mais forte que a solidão e a morte.

Como expressamos nosso relacionamento de amizades?

Às vezes, basta uma troca de olhares, um olhar de admiração, de ternura, de júbilo...

Às vezes um telefonema, um diálogo, uma conversa, uma atenção...

Às vezes uma visita, uma surpresa, um beijo, um abraço, um presente, uma doação...

Os sinais e gestos valem à medida que expressam nosso amor, e intensificam nossa comunhão.

Portanto, a comunicação é chave central de nossa relação interpessoal.

Também Deus nos convida para uma experiência pessoal, para um encontro íntimo com Ele. Sem esta experiência vivencial nosso relacionamento com Ele permanece distante, formalista, artificial, mágico, supersticioso, moralista, legalista, utilitarista, teórico, racionalista, superficial.

Sem esta relação pessoal com Deus, sem esta intimidade profunda, sem este contato vital com esse Mistério fascinante de Amor, a vida religiosa e espiritual se desvaloriza como dinheiro em tempo de inflação.

De que adianta o mais belo carro na garagem sem gasolina para andar? Aqui reside a tragédia e o absurdo dos homens de Deus” vazios de Deus, sem calor humano, sem vibração, sem entusiasmo, sem paixão pela causa de Deus. Não se trata de “administrar” sacramentos, “rezar missas”, fazer pastoral para jovens, noivos, casais, famílias, doentes, pobres, recitar palavras, mesmo que sejam sagradas, repetir fórmulas tradicionais ou convencionais, se não formos testemunhas da presença viva de Deus, da presença de Cristo no meio de todos...

Se nossas celebrações não forem expressões vivas de nossa Fé, tudo não passa de um teatro, de um show religioso diante de plateias cômicas. Gestos re-presentativos viram mera representação. A chave central de nossa vida espiritual  é nossa relação pessoal.

Antes de mais nada, é preciso viver a consciência da presença de Deus dentro de nós pela fé e pelo amor.

Deus é a vida de nossa vida. Deus é o caminho de nossos caminhos. Deus é a luz de nossa consciência. Deus é a energia de nosso ser. Deus é o amor de nossos corações. Deus é a lâmpada de nossos pés. Deus é a fonte de nossas relações. Deus é o vinho de nossa sede. Deus é o pão de nossa fome. Deus é plenitude de nossa saudade. Deus é o fascínio de nossos sonhos. Deus é o centro vital de nossa pessoa.

“Se alguém me ama,
guardará a minha palavra,
meu Pai o amará
e viremos a ele,
e nele faremos a nossa morada” ( Jo 14, 13 )

A condição fundamental para sermos a morada de Deus é o Amor. Quanto mais profundo o amor, tanto mais profunda a experiência de Deus, a relação íntima com Ele.

Quanto mais o peixinho mergulha na profundeza do mar, tanto mais experimentará o oceano que o envolve, o sustenta, o penetra – como Deus, que nos é mais íntimo que nossa própria interioridade, como lembra Santo Agostinho.

Nós carregamos no coração uma primavera que ninguém poderá esmagar. Deus se comunica para permanecer conosco na intimidade do amor que é o segredo, o princípio e a base do encontro profundo e da comunicação intensa.

A única relação possível com Deus é de uma aliança mútua:
                                   do amor por parte de Deus,
                                   da resposta ao amor por parte do homem.

O alimento desta aliança é o diálogo, é a oração. O ser humano é o único ser criado para conversar com Deus, encontrando nele a plenitude da felicidade.

O mais perfeito modelo e ideal de relacionamento com Deus é Jesus. Sua comunicação com o Pai acontece num clima de infinita ternura, confiança, intimidade, comunhão.

Jesus nos revela todo o mistério sobre Deus, numa única palavra: Pai.

Também nós podemos falar com Deus não como um distante, desconhecido, estranho, isolado, mas um amigo próximo, íntimo, amado, pessoal. Nossa relação com Deus é a relação profunda de uma aliança, relação de nossa pessoa para com alguém que é pessoa em plenitude.

Numa palavra, viver é amar,
amar é orar,
orar é transformar-se e transformar o mundo.

O segredo da oração e de nossa vida é a descoberta de Deus em nós.

Só assim nossas palavras e atitudes, nossas liturgias, nossas celebrações terão sentido, porque expressam o que sentimos, acreditamos, testemunhamos com o nosso coração.

Esta é a vitória que vence o mundo; nossa fé.(1 Jo 3, 4)



(1) "Você Pode Viver em Plenitude"  Editora Vozes, 1997

Veja pela Internet: