05 junho 2016

O Segredo da Vida Espiritual


O autor do texto a seguir, Frei Clemente Kesselmeir, OFM nasceu em Dortmund, Alemanha em 1934, e faleceu no Rio de Janeiro em 6 de junho de 2011. Aos dez anos de idade viu sua cidade natal ser destruída na segunda guerra mundial. Aos quinze anos, em visita ao túmulo de São Francisco de Assis, de motocicleta, com seu irmão gêmeo, optou pela vida franciscana. 
   
Em outubro de 1955 chegou ao nosso país como seminarista da Província Franciscana Imaculada Conceição do Brasil (SC). Em 15 de dezembro de 1962, ordenou-se sacerdote. Seu irmão gêmeo também emigrou para o Brasil, vindo a abraçar o sacerdócio como padre secular (Pe. Henrique Kesselmeir).
  
Transferindo-se para o Convento de Santo Antônio, no Rio de Janeiro, Frei Clemente trabalhou dezoito anos na Paróquia de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, então dirigida pelos franciscanos, e veio a tornar-se um dos padres mais conhecidos e queridos da cidade. Foi também capelão do Convento das Clarissas, na Gávea. Distinguiu-se como orientador de retiros e celebrante caloroso de missas e casamentos, sendo por muitos considerado como o melhor orador sacro do Brasil em seus dias. Suas missas no Convento de Santo Antônio e no Convento das Clarissas enchiam a igreja e a capela de fiéis profundamente tocados por seu carisma.

Além de sacerdote, pintor, poeta e escritor, foi um profeta que anunciava as maravilhas de Deus e denunciava os males que se opõem ao dom da vida.  Publicou vários livros de incentivo à fé, ao otimismo, à alegria e ao amor, entre os quais o aclamado "Você Pode Viver em Plenitude" (1). Compreendia bem a importância da meditação e da contemplação para os cristãos, e costumava dizer: "antes de nos tornarmos raio temos de ser nuvem". 

No presente texto, escrito em 1997 e essencialmente dirigido aos cristãos em geral, Frei Clemente incluiu uma mensagem dirigida a seus colegas sacerdotes, exortando-os a exercer suas funções com o calor e o entusiasmo que ele mesmo soube imprimir a seu ministério.

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A filha mais nova de um empresário pediu que o pai lesse para ela todas as noites um conto de fadas. Por andar muito ocupado, teve a ideia de gravar os contos. A menina aprendeu a lidar com o gravador e tudo correu bem por algumas semanas, até que uma noite ela entregou o livro ao pai.

 Ora, querida  disse o pai  você sabe ligar tão bem o gravador.

 Sim pai, mas eu não posso sentar-me no colo do gravador.

Os encontros humanos tornam-se cada dia mais frios, distantes, mecânicos, banais.
  
O gravador é como a televisão, não tem nome, não tem rosto nem olhar, não conversa com ninguém. A televisão não nos abraça, não substitui jamais o calor humano, a intimidade, o pulsar do coração; não constrói uma ponte sobre o abismo da solidão. Nunca realiza um  verdadeiro encontro.

O mistério da pessoa é o mistério da liberdade. O mistério da liberdade é o mistério dos encontros.
  
Cada encontro é um mistério. Cada encontro é uma surpresa.

Cada encontro é providencial. Cada encontro tem um sentido.

Um dos encontros mais fascinantes acontece quando o companheiro encontra sua companheira na estrada da vida. Quando acontece esse encontro de amor,  acontece abertura, saída de si mesmo, proximidade, atenção, auto-revelação, diálogo, confiança, reciprocidade, intimidade, comunicação, comunhão.

A boca fala do transbordamento do coração. Mergulhamos no mistério do outro e nos revelamos. Desvendamos nosso nome, nossa história, nossa família, nossos sonhos, nossos sentimentos e pensamentos, nosso ideal, nossa vocação, nossos valores, nossas necessidades, nossas lutas e preocupações, nossas alegrias e angústias, nossa singularidade, o mistério de todo nosso ser.

Revelar-se significa tornar-se transparente ao Mistério do Amor, testemunhar a vida que se renova a partir do encontro.

O verdadeiro encontro entre um homem e uma mulher é o momento de todos os sonhos, de todas as esperanças, de todas as saudades. É o sabor do paraíso, é o céu caído na terra, o esplendor da primavera, a glória da vida, a festa da plenitude, a luz da gratuidade, o jardim da felicidade. É o mistério inefável da relação pessoal e profunda, íntima e intensa de dois seres que se transcendem na autodoação. Acontece um novo nascimento, uma nova realidade, uma nova aliança, uma nova existência, um novo sentido, um novo motivo pelo qual viver e lutar. Fazemos a experiência mais bela da graça que nos envolve como a música, que nos abre novos caminhos e horizontes, que nos ilumina cada dia com uma nova luz.

O que sentimos é a experiência da identidade, uma força interior imensa, uma afinidade profunda, uma vitalidade intensa, a convergência de dois ideais, as verdades mais profundas de nosso ser, que fazem de nossa existência uma transcendência. Sentimos que somos realmente únicos, inconfundíveis e irrepetíveis.

Deslumbramos que o verdadeiro encontro no amor é sagrado, é divino e portanto mais forte que a solidão e a morte.

Como expressamos nosso relacionamento de amizades?

Às vezes, basta uma troca de olhares, um olhar de admiração, de ternura, de júbilo...

Às vezes um telefonema, um diálogo, uma conversa, uma atenção...

Às vezes uma visita, uma surpresa, um beijo, um abraço, um presente, uma doação...

Os sinais e gestos valem à medida que expressam nosso amor, e intensificam nossa comunhão.

Portanto, a comunicação é chave central de nossa relação interpessoal.

Também Deus nos convida para uma experiência pessoal, para um encontro íntimo com Ele. Sem esta experiência vivencial nosso relacionamento com Ele permanece distante, formalista, artificial, mágico, supersticioso, moralista, legalista, utilitarista, teórico, racionalista, superficial.

Sem esta relação pessoal com Deus, sem esta intimidade profunda, sem este contato vital com esse Mistério fascinante de Amor, a vida religiosa e espiritual se desvaloriza como dinheiro em tempo de inflação.

De que adianta o mais belo carro na garagem sem gasolina para andar? Aqui reside a tragédia e o absurdo dos homens de Deus” vazios de Deus, sem calor humano, sem vibração, sem entusiasmo, sem paixão pela causa de Deus. Não se trata de “administrar” sacramentos, “rezar missas”, fazer pastoral para jovens, noivos, casais, famílias, doentes, pobres, recitar palavras, mesmo que sejam sagradas, repetir fórmulas tradicionais ou convencionais, se não formos testemunhas da presença viva de Deus, da presença de Cristo no meio de todos...

Se nossas celebrações não forem expressões vivas de nossa Fé, tudo não passa de um teatro, de um show religioso diante de plateias cômicas. Gestos re-presentativos viram mera representação. A chave central de nossa vida espiritual  é nossa relação pessoal.

Antes de mais nada, é preciso viver a consciência da presença de Deus dentro de nós pela fé e pelo amor.

Deus é a vida de nossa vida. Deus é o caminho de nossos caminhos. Deus é a luz de nossa consciência. Deus é a energia de nosso ser. Deus é o amor de nossos corações. Deus é a lâmpada de nossos pés. Deus é a fonte de nossas relações. Deus é o vinho de nossa sede. Deus é o pão de nossa fome. Deus é plenitude de nossa saudade. Deus é o fascínio de nossos sonhos. Deus é o centro vital de nossa pessoa.

“Se alguém me ama,
guardará a minha palavra,
meu Pai o amará
e viremos a ele,
e nele faremos a nossa morada” ( Jo 14, 13 )

A condição fundamental para sermos a morada de Deus é o Amor. Quanto mais profundo o amor, tanto mais profunda a experiência de Deus, a relação íntima com Ele.

Quanto mais o peixinho mergulha na profundeza do mar, tanto mais experimentará o oceano que o envolve, o sustenta, o penetra – como Deus, que nos é mais íntimo que nossa própria interioridade, como lembra Santo Agostinho.

Nós carregamos no coração uma primavera que ninguém poderá esmagar. Deus se comunica para permanecer conosco na intimidade do amor que é o segredo, o princípio e a base do encontro profundo e da comunicação intensa.

A única relação possível com Deus é de uma aliança mútua:
                                   do amor por parte de Deus,
                                   da resposta ao amor por parte do homem.

O alimento desta aliança é o diálogo, é a oração. O ser humano é o único ser criado para conversar com Deus, encontrando nele a plenitude da felicidade.

O mais perfeito modelo e ideal de relacionamento com Deus é Jesus. Sua comunicação com o Pai acontece num clima de infinita ternura, confiança, intimidade, comunhão.

Jesus nos revela todo o mistério sobre Deus, numa única palavra: Pai.

Também nós podemos falar com Deus não como um distante, desconhecido, estranho, isolado, mas um amigo próximo, íntimo, amado, pessoal. Nossa relação com Deus é a relação profunda de uma aliança, relação de nossa pessoa para com alguém que é pessoa em plenitude.

Numa palavra, viver é amar,
amar é orar,
orar é transformar-se e transformar o mundo.

O segredo da oração e de nossa vida é a descoberta de Deus em nós.

Só assim nossas palavras e atitudes, nossas liturgias, nossas celebrações terão sentido, porque expressam o que sentimos, acreditamos, testemunhamos com o nosso coração.

Esta é a vitória que vence o mundo; nossa fé.(1 Jo 3, 4)



(1) "Você Pode Viver em Plenitude"  Editora Vozes, 1997

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