Convite à felicidade
"Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me." (Lc 9, 23)
Estas palavras de Jesus, apresentadas também em Mt 16, 24 e Mc 8, 34, têm transmitido ao longo dos séculos, aos que não as compreendem bem, a impressão de que o Evangelho nos convida à autonegação e ao sofrimento. A interpretação errônea dessas e de outras passagens de teor semelhante do Novo Testamento tem perpetuado, entre nós, duas atitudes negativas: por um lado, legiões de cristãos julgaram-se no dever de viver sua fé de forma sombria e pessimista, a ponto de reprimirem, em si próprios e nos outros, toda manifestação espontânea de alegria; por outro lado, grande número de pessoas bem-intencionadas tem-se afastado ou permanecido à distância da Igreja, na convicção de que o Cristianismo se contrapõe a um direito inalienável do ser humano: a busca da felicidade.
Ora, a felicidade é, na definição de Aristóteles, o Bem Supremo, e sua busca determina tudo o que fazemos. O ser humano é simplesmente incapaz de não desejar a verdade e a felicidade. A propósito disto o escritor romeno Virgil Gheorghiu (1916-1992), ordenado Padre Ortodoxo em 1963, escreveu:
"Um homem é uma criatura que busca a felicidade. Em essência todo homem, ao longo de toda sua vida, nada mais faz que procurar a felicidade. Os santos e os assassinos, os ladrões e os bem-aventurados, os pecadores e os virtuosos, absolutamente todos os homens que viveram, vivem e viverão sobre a terra, não fazem senão uma coisa: eles buscam a felicidade.
"O que diferencia os homens é unicamente a maneira, o lugar e os meios que eles escolhem para tornarem-se felizes: é nisto que o santo é diferente do assassino, pois os dois nada mais fazem que procurar a felicidade, mas eles a procuram de modos diferentes."
A passagem acima revela que, para o autor, a santidade e as virtudes cristãs não se contrapõem à busca da felicidade. O alargamento de visão oferecido por uma leitura contemplativa dos Evangelhos permite compreender que o convite ao seguimento de Cristo é, na verdade, um convite à felicidade. Isto é deixado claro por São Bento que, no prólogo de sua Santa Regra, atribui ao Senhor, "buscando o seu operário na multidão do povo", a pergunta: "Qual é o homem que quer a vida e deseja ver dias felizes?"
A abadia beneditina de Fleury (França) disponibiliza na web o texto "Felicidade e Vida Cristã", escrito por um de seus monges, no qual a presente postagem é inspirada. Desse texto, que vale a pena conhecer na íntegra (1), extraímos as seguintes passagens:
"Quando leio a Bíblia, que é para mim palavra de Deus, eu constato que essa busca da felicidade, tão profundamente ancorada no coração do homem, ajusta-se perfeitamente ao projeto de Deus para ele. Na Bíblia a palavra "feliz" é, sem dúvida, uma das que ocorrem com maior freqüência (157 vezes, ao que sei). É por esta palavra que começa o Saltério, o livro de oração do povo judeu, que tornou-se também o livro de oração do povo cristão; esta é, também, a palavra-chave do Evangelho, cuja carta principal se chama 'As Beatitudes', isto é, 'como descobrir e conhecer a felicidade'.
"E podemos encontrar, ainda, (no Evangelho) muitos termos equivalentes, tais como ' a procura do Reino', 'a vida eterna' ou simplesmente 'a vida', assim como 'a salvação' e tantos outros... Começando pelo início: a palavra 'Evangelho' é a simples transcrição de uma palavra grega significando 'boa nova', que pode-se também interpretar como 'a notícia da felicidade'. Do mesmo modo, quando leio: 'Eu vim para que os homens tenham vida e a tenham em abundância' (Jo 10, 10) eu entendo 'Eu vim para que os homens tenham a felicidade e a tenham em abundãncia'; ou ainda, quando leio: 'Bom mestre, que devo fazer para herdar a vida eterna?' (Lc 18,18) eu entendo 'que devo fazer para alcançar a felicidade?'
"Faz-se necessário reler todo o Evangelho com essa chave de leitura, e em particular as parábolas que nos falam do Reino: 'O Reino dos Céus é semelhante a...' equivale a: 'a busca da felicidade é semelhante a...' ".
Em nossa cultura a palavra "felicidade" tem, evidentemente, muitos sentidos. É habitual a confusão entre felicidade e ventura (boa-sorte), ou entre felicidade e prazer, conforto, satisfação do desejo de posse etc. É claro que, em sentido evangélico, a palavra se refere a algo bem mais duradouro e profundo, que diz respeito à própria essência do ser humano. Somos convidados por Deus a fazer a experiência dessa autêntica felicidade. O convite não inclui, ao contrário das teses de uma certa "teologia da prosperidade", a promessa de qualquer espécie de imunidade em relação ao infortúnio.
A verdadeira felicidade é um dom de Deus ao qual muitos, infelizmente, se fecham, seja por suas convicções, seja por seu estilo de vida (cada vez mais determinado por um meio social hostil aos valores cristãos). Discernir como, nas circunstâncias particulares de nossa vida, devemos proceder para nos abrirmos a esse dom é algo naturalmente difícil. Para lidar com essa dificuldade precisamos deixar-nos permear pelo Espírito de Deus que já nos habita, cultivando, com a ajuda das práticas contemplativas, uma permanente atitude de assentimento à sua presença e de docilidade à sua vontade. Caso seja necessário, a ajuda de um conselheiro espiritual deve ser solicitada.
(1) Bonheur et Vie Chrétienne - texto disponibilizado na Internet (em francês) pela Abadia de Fleury, no seguinte endereço: http://abbaye.chez-alice.fr/bonheur.htm