25 abril 2009

A Nuvem do Não Saber

O texto a seguir é a condensação de uma palestra do Pe. Barry William Malone, SM (1) no retiro "Oração Profunda com os Místicos Ingleses", organizado pelo Círculo Gregório de Nissa e realizado no Centro Marista de Mendes, RJ de 26 a 28 de setembro de 2008. Um livro com o conteúdo completo de todas as palestras foi publicado em 2010 pelo autor, sob o título "Um Retiro com os Místicos Ingleses". Para adquirir um exemplar, mande e-mail para o Pe. Barry William (barrymarist@yahoo.com.br) perguntando sobre o modo de proceder.
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Estávamos em 1984, e eu havia passado o dia na periferia de Peshawar, na Província Noroeste do Paquistão. Havíamos visitado alguns dos muitos campos de refugiados. Estimava-se haver uns dois milhões de refugiados afegãos no Paquistão naquela época. Eles estavam se refugiando dos russos, que tinham naquele tempo controle absoluto do Afeganistão. As cenas eram lamentáveis — acampamentos de tendas, e o inverno se aproximando. Muito poucos homens nos acampamentos, e muitos deles fortemente armados. Membros mutilados. Ociosidade forçada. Visitamos uma Missionária Médica de Maria, norte-americana, que havia passado meses organizando programas sanitários para os acampamentos em nome das Nações Unidas. Ali estava ela — em roupas paquistanesas, sentada depois de um dia de trabalho intenso, e lendo — o que lia? A Nuvem do Não Saber — um livro espiritual da Inglaterra do século 14 (2).

Na segunda metade do século, quase ao mesmo tempo em que Walter Hilton (3) escrevia sua “Escalada da Perfeição”, outro trabalho apareceu na Inglaterra chamado “A Nuvem do Não Saber”. O autor é desconhecido. A maioria dos estudiosos acredita que ele veio do centro da Inglaterra. Ele escreveu este trabalho para sugerir a alguém que o tempo havia chegado para avançar na vida espiritual, e mudar a maneira como aquela pessoa vinha orando. O ensinamento do livro é, hoje em dia, bem conhecido dos que praticam a Oração Centrante. Ele sugere que seu discípulo pare de tentar rezar usando sua imaginação ou pensando e, em vez disso, repita interiormente uma pequena palavra como um ato contínuo de fé e amor. Ele até sugere que esta palavra poderia ser “Deus” ou “Amor”. Quando a pessoa que assim reza notar que está distraída, o livro ensina, ela deverá simplesmente retornar à repetição amorosa interior da palavra. O autor chama a este exercício “contemplação”.

No capítulo 7 de seu livro, o mestre anônimo indicou que esta maneira de rezar não é para todos. Ele escreve: “A pessoa vai falhar em seu propósito, se chegar à contemplação sem muita meditação sobre seu estado deplorável, sobre a Paixão de Nosso Senhor, a afabilidade e bondade de Deus”. Mas ele vai adiante para afirmar: “Mas para penetrar na Nuvem do Não Saber, a pessoa que por muito tempo praticou essas meditações precisa deixá-las de lado, colocando-as e segurando-as debaixo da Nuvem do Esquecimento”.

Qual é, na realidade, o tempo apropriado para deixarmos de pensar em Deus e pararmos de tentar conversar com Deus sobre todas as coisas? Esta é uma questão sempre presente. O autor insiste que é bom pensar sobre a bondade de Deus e amar e louvar Deus por sua bondade, mas ele escreve que é melhor pensar “Apenas no Ser” de Deus e amar e louvar a Deus por Ele mesmo.

Temos aqui três expressões que talvez necessitem alguma explicação:

a) A Nuvem do Não Saber: figura a nossa incapacidade de conhecer Deus como Deus é em Si Mesmo — intenção que ultrapassa nossa habilidade de pensar sobre Ele ou ainda mais imaginá-Lo. Deus é muito, muito maior do que nossa fraca compreensão dEle. Não podemos alcançar Deus diretamente por nosso entendimento, mas podemos amá-Lo — de fato, podemos amar a Deus diretamente. Assim, endereçamos nossa palavra de fé e amor a Deus, que é incompreensível para nós, que permanece escondido na Nuvem do Não Saber. De acordo com nosso mestre, a experiência de Deus — a contemplação — é um não conhecimento.

b) A Nuvem do Esquecimento: procuramos penetrar na Nuvem do Não Saber deixando de lado deliberadamente toda imaginação, pensamento ou discurso interior. Muitos fecham os olhos, outros os fixam sobre certo ponto (uma cruz ou ícone, por exemplo). Escolhemos um lugar sossegado para evitar distrações e suavemente (com certeza nenhuma violência contra si mesmo é recomendada!), conscientemente repetimos nossa palavra, retornando a ela quando distraídos. Assim colocamos de lado os pensamentos — sejam eles piedosos, sejam simples distrações. Colocamo-los de lado — ou,como diz o autor, colocamo-los debaixo da Nuvem do Esquecimento — e deixamos nossa palavra ser como uma flecha que atravessa a Nuvem do Não Saber,onde Deus graciosamente aceita nosso amor e fé.

c) O Ser Desnudo de Deus: isto significa apenas Deus como Deus é em Si Mesmo. Aceitamos tudo que o Deus nos revelou, especialmente a revelação muito especial de Deus que é Jesus, nascido de Maria, Jesus que morreu e ressuscitou. Aceitamos a verdade, a profundidade e a vida da Santíssima Trindade, mas nesta oração escolhemos não pensar ou meditar sobre tudo isto mas, de preferência, descansar em Sua presença, apenas permanecer consciente e amorosamente nessa presença. Escolhemos simplesmente deixar que Deus nos ame e, em resposta, fazer atos de amor.

A dinâmica do ensinamento da “Nuvem do Não Saber” é aquela dinâmica de uma amizade que se aprofunda e fica mais íntima, que vai se purificando. Chega o tempo, na amizade, em que apenas ficarmos quietos juntos é perfeitamente bom. Palavras são instrumentos de amor e amizade, mas têm limites — sua superficialidade e inadequação podem bloquear uma amizade mais profunda. Há um tempo para ser silenciosos. Esta forma de oração é um caminho para uma oração mais silenciosa — caso seja para isto, de fato, que o Senhor nos chama.

Mas nossa fé e amor ainda necessitam de algum alimento. É de esperar que tenham continuidade nossa vida litúrgica, nossa oração com os outros, nossa leitura das Sagradas Escrituras, nossas conversas sobre a fé. Abraçar a oração de repetição de uma palavra de amor não significa jogar fora todas as outras formas de rezar, mas significa ajustar nossa vida para termos tempo de “ficar em quietude e saber que Deus é Deus” (Sl 46,11).

Algumas pessoas descobrem esta forma de oração com alívio e gratidão. Certamente este foi meu caso. Talvez leve algum tempo para integrar esta oração em nossa vida cotidiana. Por isso a leitura e releitura da “Nuvem do Não Saber” seria provavelmente muito útil. Uma leitura guiada da “Nuvem”, lindamente escrita, é apresentada no livro “A Busca Amorosa por Deus”, do Pe. William Meninger, OCSO (4). Outros autores na tradição da “Nuvem” são o Pe. Thomas Keating (5) e o Pe. Basil Pennington (6). Os três são monges trapistas norte-americanos e vários de seus trabalhos estão disponíveis em português. Eles chamam de “Oração Centrante” a forma de oração ensinada na “Nuvem”.

Acho útil lembrar que repetir interiormente uma palavra não é, em si mesmo, um ato religioso. Mas quando a fé, a confiança e o amor motivam a repetição, esta prática se transforma em ato religioso. Afinal, andar pode ser uma ação moralmente neutra — em si mesmo nem boa, nem má. Animais podem andar. Mas podemos andar pela rua para roubar um banco, ou andar numa procissão religiosa, ou para levar a Eucaristia a uma pessoa doente. A motivação transforma o andar. De maneira similar, nossa motivação pode transformar a simples repetição interior da nossa palavra de amor em ato de fé e amor, em ato religioso, um encontro com Deus.

Algumas pessoas acham muito agradáveis o silêncio e a quietude, enquanto outras sentem-se ameaçadas, e outras dizem que adormecem. Podemos evitar o sono, escolhendo o tempo e o lugar para nossa oração, soltando sapatos apertados, lavando rosto e mãos antes da oração, lembrando a postura. Cair no sono de vez em quando durante a oração não é das piores coisas que podem nos acontecer! A sensação de nos sentirmos ameaçados pelo silêncio interior pode ser muito desconfortável, mas em geral decorre da falta de hábito. Logo que nos acostumamos com o silêncio, a ameaça parece desaparecer por completo.

Às vezes paramos de repetir nossa palavra sem nos darmos conta disso. Tal fato é muito normal e não deve nos preocupar. Quando notamos que aconteceu, podemos retornar suavemente a nossa palavra.

Alguém me disse, certa ocasião: “A experiência foi maravilhosa, repousante e até alegre — mas será que foi realmente oração”? Minha resposta foi, e é: sim, sim. Mas precisamos ainda discernir com responsabilidade se esta forma de oração é a melhor para nós. A repetição da palavra é uma maneira de permanecer em quietude, algo que muitos acham difícil. A tensão nervosa provocada por nosso estilo ativo de vida pode tornar bastante difícil sentar em quietude. Muitas pessoas acham a repetição da palavra amorosa uma grande ajuda.

Lembremos bem claramente que a meta ou finalidade de nossa Oração Centrante não é a eliminação de toda atividade intelectual. Embora tal atividade seja deliberadamente reduzida ao mínimo, nunca ficamos completamente passivos. Quem reza de acordo com os ensinamentos da “Nuvem” não está à procura do nada, mas sim de Deus. Vamos nos referir aqui a São João da Cruz quando ele ensina que tudo que não é Deus é como o nada, e realmente não é nada sem Deus.

“A Nuvem do Não Saber” é uma das grandes riquezas da tradição mística inglesa. O estilo do livro é tão inglês — muito pouca auto-referência extravagante. Mas o ensinamento é cauteloso e claro. De onde vem tudo isto?

A tradição do Pseudo Dionísio (7) é bem evidente. Estamos diante de ensinamentos que evidenciam a influência da Alexandria cristã do terceiro ao sexto século. Dionísio foi um monge sírio. Seus escritos chegaram à Europa Ocidental na Idade Média. Até Santo Tomás de Aquino cita-o com respeito. Ricardo de São Victor é, provavelmente, o elo principal entre Dionísio e o autor da “Nuvem”. O atual Papa, Bento XVI, falou sobre a teologia espiritual de Dionísio em discurso na audiência geral semanal de 14 de Maio de 2008. Permitam que cite algumas palavras do Papa: “Deus é encontrado sobretudo no louvor, não apenas na reflexão... Com o Pseudo Dionísio a palavra ‘místico’ torna-se mais pessoal, mais íntima. Ela exprime o caminho da alma em direção a Deus ... os mais elevados Conceitos de Deus nunca atingem sua verdadeira grandeza. Permanecem sempre aquém Dele ... Na simplicidade das imagens bíblicas encontramos mais verdade do que nos grandes conceitos. A face de Deus é nossa incapacidade de expressar verdadeiramente o que ele é. Somente através dessas imagens podemos captar sua verdadeira face — e, por outro lado, esta face de Deus é muito concreta. Ela é Jesus Cristo... O Pseudo Dionísio nos mostra que, afinal, o caminho para Deus é o próprio Deus, que tornou-se próximo de nós em Jesus Cristo”.

Para concluir, vamos ler, do capítulo 9 da “Nuvem”:

“Tenha muita certeza que você nunca terá a visão de Deus sem nuvem nesta vida. Mas poderá ter a percepção Dele, se Ele estiver disposto, por sua graça, a dá-la a você. Por isso, erga seu amor até aquela Nuvem. Ou, mais precisamente, deixe Deus elevar seu amor até ela. E procure, por sua graça, esquecer todo o resto.”



(1) O Pe. Barry William Malone, SM é Conselheiro do Círculo Gregório de Nissa. Nascido na Nova Zelândia em 1944, pertence à Sociedade de Maria (Padres Maristas) e trabalha no Brasil desde 1984. Em 2014 completa cincoenta anos de sacerdócio. Na época deste retiro vivia em Belo Horizonte, onde exercia as funções de Capelão Universitário, Pároco e Reitor / Formador do Seminário de Padres Maristas instalado naquela cidade. Atualmente (2014) vive  em Curitiba, onde dirige retiros espirituais e exerce atividades de apoio ao Seminário São Pedro Chanel.
(2) As principais edições da "Nuvem do Não Saber" publicadas no Brasil são as da Paulus Editora (1987), traduzida por Maria de Moraes Barros, e a da Editora Vozes (2008), traduzida por Dom Lino Correia Marques de Miranda Moreira, OSB.
(3) Walter Hilton (1343-1396): místico agostiniano inglês, considerado importante mestre espiritual por sua obra A Escalada da Perfeição, um "lúcido e equilibrado" guia para a vida contemplativa.
(4) William Meninger, OCSO — A Busca Amorosa por Deus. Edições Bagaço, Recife, 2008. A Editora Santuário publicou, do mesmo autor, O Processo do Perdão (2006).
(5) Livros de Thomas Keating, OCSO publicados no Brasil: Intimidade com Deus (Paulus, 1999); Mente Aberta, Coração Aberto (Edições Loyola, 2005); Convite ao Amor (Loyola, 2005); O Mistério de Cristo (Loyola, 2005); A Condição Humana (Santuário, 2006).
(6) Livros de M. Basil Pennington, OCSO publicados no Brasil: Deus ao Alcance das Mãos (Paulinas, 1982); Oração Centrante (Editora Palas Athena, 2002).

(7) Dionísio — monge sírio do Século V; publicou pelo final desse século o curto tratado Teologia Mística, considerada obra basilar da Teologia da Negação ou Teologia Apofática. Como o trabalho foi publicado sob o pseudônimo de Dionísio Areopagita (que foi um discípulo de São Paulo), nos tempos atuais ele é usualmente chamado "Pseudo Dionísio".