Toda Beleza Anuncia Deus
A beleza da Criação e a beleza revelada nas artes falam ao homem de Deus. Muitos importantes pensadores cristãos têm refletido sobre este tema, desde Dionísio o Pseudo-Aeropagita e Santo Agostinho, passando por Tomás de Aquino, Kierkergaard e Dostoievski até, entre os contemporâneos, os teólogos Hans Hurs Von Balthasar e Bruno Forte e os dois últimos Papas (João Paulo II e Bento XVI). Os desenvolvimentos recentes dessa reflexão permitiram cunhar a expressão Estética Teológica (1) para designar o ramo do pensamento que se ocupa do referido tema. Nesta postagem transcrevemos algumas inspiradas passagens de documentos dos mencionados Papas, de um Bispo católico brasileiro e um poeta e filósofo irlandês relacionadas com o assunto, e apresentamos uma prática contemplativa proposta em retiros do Círculo Gregório de Nissa, na qual os participantes são convidados a mergulhar, em clima de oração, na beleza de algumas composições musicais escolhidas.
Carta aos Artistas
“Deus chamou o homem à existência, dando-lhe a tarefa de ser artífice. Na “criação artística”, mais do que em qualquer outra atividade, o homem revela-se como “imagem de Deus” (...). Com amorosa condescendência, o Artista divino transmite uma centelha da sua sabedoria transcendente ao artista humano, chamando-o a partilhar do seu poder criador.
“Ao pôr em relevo que tudo o que tinha criado era bom, Deus viu também que era belo. A confrontação entre o bom e o belo gera sugestivas reflexões. Em certo sentido, a beleza é a expressão visível do bem, do mesmo modo que o bem é a condição metafísica da beleza.
“A este respeito, é igualmente significativa a lauda extasiada, que São Francisco de Assis repete duas vezes na chartula, redigida depois de ter recebido os estigmas de Cristo no monte Alverne: ‘Vós sois beleza... Vós sois beleza!’ São Boaventura comenta: ‘Contemplava nas coisas belas o Belíssimo e, seguindo o rasto impresso nas criaturas, buscava por todo o lado o Dileto.'
“Toda a autêntica inspiração, porém, encerra em si qualquer frêmito daquele “sopro” com que o Espírito Criador permeava, já desde o início, a obra da criação. (...) Fala-se então justamente, (...) de 'momentos de graça', porque o ser humano tem a possibilidade de fazer uma certa experiência do Absoluto que o transcende.
“Já no limiar do terceiro milênio, desejo a todos vós, artistas caríssimos, que sejais abençoados, com particular intensidade, por essas inspirações criativas. A beleza, que transmitireis às gerações futuras, seja tal que avive nelas o assombro. Diante da sacralidade da vida e do ser humano, diante das maravilhas do universo, o assombro é a única atitude condigna.
“A beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente. É convite a saborear a vida e a sonhar o futuro. (...) Que as vossas múltiplas sendas, artistas do mundo, possam conduzir todos àquele Oceano infinito de beleza, onde o assombro se converte em admiração, inebriamento, alegria inexprimível.”
Arte e Oração
(Excertos da alocução do Papa Bento XVI na audiência geral de 31.08.2011)
"Hoje, gostaria de me deter brevemente sobre um dos caminhos que podem nos conduzir a Deus e servir também de ajuda para o encontro com Ele: refiro-me ao caminho das manifestações artísticas, que faz parte daquela “via pulchritudinis” – o “caminho da beleza” – do qual já falei diversas vezes, e que o homem contemporâneo deveria recuperar em seu significado no mais profundo.
"Talvez já lhes tenha acontecido algumas vezes, diante de uma escultura, de um quadro, de certos versos de poesia ou de uma peça musical, sentir uma emoção íntima, ter uma sensação de alegria, ou seja, sentir claramente que diante de vocês não havia apenas matéria (um pedaço de mármore ou de bronze, uma tela pintada, um conjunto de letras ou uma sequência de sons), mas algo maior, algo que 'fala', capaz de sensibilizar o coração, de comunicar uma mensagem e de elevar a alma. (...) A arte (...) pode ser comparada a uma porta aberta para o infinito, para a beleza e para a verdade que vão mais além da vida quotidiana. Uma obra de arte pode abrir os olhos de nossa mente e coração, impelindo-nos para o alto.
"Algumas expressões artísticas constituem verdadeiros caminhos que levam a Deus, à beleza suprema, e podem ser uma ajuda para crescermos na relação com Ele, na oração. Refiro-me às obras que nascem da fé e que a expressam. Podemos ter um exemplo disso quando visitamos uma catedral gótica: sentimo-nos arrebatados pelas linhas verticais que se perfilam rumo ao céu e atraem o nosso olhar e nosso espírito enquanto, ao mesmo tempo, nos sentimos pequenos e, no entanto, desejosos de plenitude (...) Outras vezes, quando ouvimos uma peça de música sacra que faz vibrar as cordas do nosso coração, nossa alma parece dilatar-se e ser impelida para Deus. (...)
"Quantas vezes quadros ou afrescos, frutos da fé do artista, nas suas formas, nas suas cores e na sua luz, nos impelem a dirigir o pensamento para Deus e fazem aumentar em nós o desejo de beber na fonte de toda beleza! (...) Paul Claudel, famoso poeta, dramaturgo e diplomata francês, tendo entrado na basílica de Notre Dame de Paris durante uma missa de Natal, em 1886, sentiu a presença de Deus precisamente ao ouvir o canto do Magnificat. Ele não havia entrado na igreja movido pela fé, mas em busca de argumentos contra os cristãos. E, no entanto, a graça de Deus agiu no seu coração.
"Queridos amigos, convido-os a redescobrir a importância deste caminho também para a oração, para a nossa relação viva com Deus. que a obra de arte exprime – o raio de beleza que nos atinge, que quase nos “fere” no mais íntimo de nosso ser e que nos convida a elevar-nos até Deus. (...) Assim poderemos deter-nos a contemplar – na passagem da simples realidade exterior para a realidade mais profunda
(...) "Esperemos que o Senhor nos ajude a contemplar sua beleza, tanto na natureza como nas obras de arte, para sermos tocados pela luz do seu rosto e, assim, podermos nós também ser luz para o nosso próximo."
A Beleza e a Ética
Como bem recorda o Bispo católico brasileiro Dom Antonio Augusto Duarte (2), aquele que contempla e saboreia a beleza em qualquer uma de suas múltiplas formas (na Criação, nas artes, na filosofia, na liturgia etc.) não se condena, por esta atitude, a permanecer confinado aos estreitos limites de suas sensações e interesses. Pelo contrário: além de apontar para Deus, a abertura à beleza contribui para elevar a pessoa à apreciação mais fina dos valores éticos, orientando-a para uma vida mais generosa, mais harmônica e mais conforme a esses valores:
"O pulchrum – a beleza – conduz o pensamento humano para o que é realmente verdadeiro, bom e uno, daí a afirmação sobre a beleza como sendo o esplendor da verdade, o esplendor do bem e o esplendor da unidade do ser. (...) O momento estético que percebe a verdade, o bem e a unidade dos seres criados deve ser considerado como um momento importante e também um momento ético único, pois a percepção do pulchrum – do belo presente na realidade cotidiana concreta – chama à liberdade para uma percepção consciente da realidade e para uma resposta à verdade integral, ao bem e à unidade referenciais, isto é, para ver e para responder a Deus, suprema Verdade, único Bem e perfeita Unidade.
"A estética ou a beleza objetiva da realidade converte-se, assim, na pedra de toque do reconhecimento prático da finalidade última do homem e da mulher. Através do belo eles podem conhecer e dirigirem-se ao fim verdadeiro e bom e que vai concedendo uma unidade harmônica à diversidade própria da vida temporal. (...)
"A beleza mais esplendorosa que existe é o pulchrum que corresponde ao ser humano. Logicamente tal beleza não se reduz à perfeita disposição das formas anatômicas (...) O conhecimento da pessoa, na sua intimidade mais profunda – imago Dei – traduz-se numa mais profunda e interpeladora chamada de Deus-Criador à liberdade humana e, portanto, numa nova e inesperada orientação para a própria plenitude."
Nossa Beleza
O poeta, filósofo e místico irlandês John O'Donohue (1956-2008) oferece um belo fecho para as reflexões acima: "Na presença do Deus da Beleza nossa própria beleza resplandece. Deus é a atmosfera na qual nossa essência se clarifica, onde toda falsidade e pretensão desaparece. Nele somos completamente envolvidos. Nenhuma palavra é necessária; nenhuma ação é requerida; pois tudo está aqui. Deus é o círculo do tempo no qual todas as nossas possibilidades se reúnem. Em Deus a retrato perfeito de nossas almas se delineia. Todos os nossos diferentes seres se unificam: os seres que somos e fomos e poderíamos ter sido e poderíamos ser, os seres não escolhidos, todas as nossas noites e todos os nossos dias, nossas vidas visíveis e invisíveis." (3)
Esta prática, proposta desde 2006 em retiros do Círculo Gregório de Nissa, destina-se a dispor os participantes à atitude de escutar música em atitude contemplativa, com a consciência de que sua beleza reflete a beleza essencial de Deus. Para isto foram selecionadas duas composições curtas e conhecidas de grande beleza: O segundo movimento do Concerto de Aranjuez, de Joaquín Rodrigo, e o Adágio para Cordas e Órgão, de Albinoni, no formato definido em 1958 por Remo Giazzotto. Enquanto a primeira composição reflete a atmosfera ensolarada e vibrante da Andaluzia, região onde nasceu Rodrigo, a segunda evoca as sombras e a solenidade das catedrais. A beleza de ambas é dádiva de Deus.
Recomendações: Ao ouvir as composições mantenha-se atento(a) a todo o seu desenrolar, mas sem reagir criticamente aos seus detalhes. Procure manter o corpo relaxado e a mente aberta, passiva, livre de pensamentos, preocupações e imagens. Deixe as vibrações da música ressoar por seu corpo, especialmente o plexo solar. Compreenda que você está pisando em solo sagrado, pois a beleza dessas composições reflete a beleza e a bondade essenciais de Deus, que o convida a partilhá-las. Responda a esse convite mergulhando no silêncio, ao término da música, por meio da Oração Centrante, da meditação ou de outra forma contemplativa e silenciosa de oração.
(1) Bruno Forte – A Porta da Beleza – Por uma Estética Teológica. Editora Idéias e Letras, 2006.
(3) John O'Donohue – Beauty – Rediscovering the True Sources of Compassion, Serenity and Hope. Harper Perennial, 2005.