Viver o Silêncio
O texto a seguir foi extraído, com autorização, do livro "Ao Encontro de Você" (1), de Frei Angelino Caio Feitosa, OFM. O
autor é um dos pioneiros do ensino organizado, para leigos, da oração
contemplativa no Brasil. À época da publicação desse livro dirigia o
Eremitério Santa Clara, na Comunidade Rio Doce, em Olinda - PE, onde
organizou diversos grupos de contemplação. Frequentemente dirigia
retiros contemplativos, não só nos Estados do Nordeste mas também no Rio
de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Com a saúde debilitada, viveu seus últimos anos no Convento de São Francisco, em Salvador - BA, onde veio a falecer no dia 5 de abril de 2015. O texto abaixo exemplifica o modo simples e coloquial de ensinar adotado pelo autor, em harmonia com seu modo despojado e bondoso de ser.
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"Maria conservava no coração todas essas coisas. E Jesus crescia e ficava mais forte, cheio de graça e de sabedoria" (Lc 2, 51-52)
O poder das trevas é a força do não iluminado, do obscuro, do medo. É tudo aquilo que se opõe à ação do Espírito Santo, que retarda essa ação, que dificulta essa ação.
Quando reprimimos emoções, sentimentos, pensamentos ou qualquer coisa de nossa consciência, abrimos espaço para o poder das trevas. Tudo que sofremos com medo, dá força ao poder das trevas dentro e em torno de nós.
Quando reprimimos emoções, sentimentos, pensamentos ou qualquer coisa de nossa consciência, abrimos espaço para o poder das trevas. Tudo que sofremos com medo, dá força ao poder das trevas dentro e em torno de nós.
Esse poder das trevas aparece na Bíblia algumas vezes. Ele é muito forte na paixão de Jesus. Quando Judas, Pedro e os apóstolos caem nesse poder do medo, deixam de viver a beleza e a verdade do momento. "Se a luz que existe em você se torna escuridão"... (Mt 6,23; Lc 11,34).
Eu diria que aí há um pecado contra o Espírito Santo, porque impede a luz do Espírito Santo de introduzir-se em sua verdade. Esta é a razão de tanta gente não realizada.
Qual é a força, a arma eficiente para enfrentar este poder destruidor? A arma eficiente se chama silêncio. O silêncio é o valor insubstituível. É a matéria-prima com que o Espírito Santo quer continuar a criar você.
Mas experimentamos dificuldades para fazer silêncio. Por que? Por causa de nossa educação. Não fomos habituados a valorizar o silêncio. Quando muito, se pedia a nós silêncio, sem percebermos o valor do silêncio para nós. Por isso, muitas vezes ficamos com ódio do silêncio, exigido de fora para dentro, sem explicação.
Há pessoas que por medo do silêncio, por ver nele apenas nulidade, ausência de eficiência, têm raiva do silêncio, têm impulso de tagarelice, ausência de conteúdo. E a mente fica entulhada de idéias sem a luz da verdade. No fundo, a pessoa dispensa o silêncio porque tem medo. Medo de ficar a sós consigo. No entanto, esse próprio medo do silêncio, se assumido, passa a ser algo positivo. Tomar consciência deste medo já é uma pequena vitória contra o poder das trevas, já é sinal de que você dá algum valor ao silêncio, significa um pouquinho de abertura à luz.
Os preciosos momentos dados à contemplação, subsidiados no correr do dia, apressam a diminuição das forças das trevas do seu ego, favorecendo a consolidação do seu ser.
A força das trevas se manifesta na ansiedade pelo reconhecimento dos outros a meu respeito. Aí, direta ou indiretamente, me dedico a mostrar minhas vantagens, preocupado com que os outros se convençam que eu sou bom, sou correto, faço tudo direitinho. Essa gabolice só faz me tornar menos aceito por aqueles que me conhecem. A força das trevas me torna ridículo. Não sou aquilo que eu desejo passar por minhas palavras. Sou o que sou, não o que eu digo que sou.
O grande fruto do silêncio é ir atenuando a agitação, a angústia de não ser amado nem aceito como sou. O silêncio vai esvaziando o meu ser em sua forma simples, natural, serena e bonita conforme Deus o inventou. Não conforme os desejos inferiores do meu ego. Vai-se adensando uma nova e estável energia, antes desconhecida. Vamos descobrindo com clareza a verdade. A verdade de nossos preconceitos, de nossas ilusões, de nossos julgamentos sobre os outros. O gosto de estar se explicando aos outros: "eu sou assim porque papai... porque mamãe...", é uma maneira de julgar os outros como responsáveis por você agir desse jeito, é uma maneira de você não se comprometer com você agora. Jogar nos outros a lama do seu insucesso.
A facilidade de julgar os outros nos mostra a necessidade do silêncio. Indispensável para a oração contemplativa, o silêncio interior vai com jeito abrindo nossa consciência à largueza do nosso ser.
A contemplação vai nos libertando do passado e do futuro e dando relevo ao que vivo agora, ao que se passa agora comigo, privilegiando a atualidade. A mente e o coração abertos ao mundo real, tal qual é experimentado por você.
A integração vai então acontecendo não apenas dentro de você, arrumando suas diversas dimensões, mas em torno de você. Vai fazendo bem à sua família, aos filhos (que são as maiores vítimas de nossa desintegração), às crianças de nossas vizinhanças, e mais particularmente aos humildes, aos sem força, aos miúdos.
Vamos olhando o mundo com olhos novos, com olhos de criança, como se fosse a primeira vez. Coisas que já vimos tantas vezes começam a ter cintilações novas. Coisas comuns como varrer uma casa, escrever algo, um jeito novo, bem-humorado, gostoso, interessante que você vive na plenitude do seu eu agora. A naturalidade vai tomando o lugar do artificialismo, e vai nos atraindo para tudo que é experiência. A beleza das coisas, dos gestos, do dia-a-dia vão dando novo valor à vida.
Mas nada disso se realizará se não houver a suavidade do silêncio. Vamos tomando consciência de que o mais importante não é o que se faz, mas o como se faz. A alma que você coloca em coisinhas como lavar prato.
Ouvir uma pessoa, às vezes, pode ser penoso porque nós já sabemos o que ela costuma dizer, mas você para e fica interessado, vai descobrindo coisas que vão fazer bem a você, não tanto o que a pessoa diz, mas o que ela revela em seu rosto. Ouvir uma pessoa, portanto, pode se tornar uma experiência que ilumina, que nos reconduz à plena beleza.
Essas ações do eu reforçam o bem da contemplação e vão assegurando, subsidiando o trabalho do Espírito Santo feito na hora do silencioso contemplar. Expondo-se ao silêncio, você acolhe a energia que, por ele, o Espírito Santo lhe dá. É a força contra o poder das trevas, que faltou a Pedro, Judas e aos apóstolos - e que marcou profundamente três mulheres: Maria, Madalena e Maria de Cleofas. Mulheres tão diferentes no passado e tão iguais no presente, porque marcadas pelo silêncio, pela ausência de querer explicar o inexplicável, aceitando o que experimentavam sem explicação. Esta força quer organizar e fazer você crescer, purifica sua casa interior e afasta a sombra do medo e da insegurança; alimenta a coragem, a decisão de viver o momento que passa, seja gratificante ou doloroso, deixando que a luz plena da atenção a tudo que lhe acontece invada o seu íntimo, afugentando o poder das trevas que multiplica seus julgamentos e atitudes condicionados pelo medo, pela insegurança, e transformando-as em ações plenas da sabedoria vinda de dentro do seu ser.
Em silêncio recebemos o que vem de graça do céu, em silêncio espalhamos pela terra o bem do Senhor.
(1) Ao Encontro de Você - Frei Angelino Caio Feitosa, OFM - Editora Universitária da UFPe, 2001. O autor publicou, ainda, os livros "Chão Necessário" (Meditação Cristã do Rio de Janeiro, 2002) e "Renasça pela Contemplação" (Edições Bagaço, 2006).
Informações sobre a disponibilidade de livros de Frei Angelino podem ser obtidas com Maria José Neto - tel (81) 3431-6109 / 9976-3309; e-mail: mariajneto2@hotmail.com ou com Sônia Freire - tel. (21) 2256-5822; e-mail: soniasfreire@gmail.com